CENA I

52 0 0
                                    


Entoo-lhes sobre a humana guerra interior, travada na quietude dos nossos imos tempestuosos. Ventoso choro desejoso. Não sou capaz de negar esse impulso que me invade, enquanto, escorado no parapeito da janela, meus olhos caóticos são deslumbrados pelo piscante trânsito da cidade lá em baixo, sob a mortalha caliginosa da noite. Não sou capaz, entretanto, de fazê-lo, pois a nascente de lágrimas que jazia em mim secara há algum tempo atrás. Se há algo, porém, que sou capaz é – sim – de me defenestrar daqui mesmo. Confesso que excedi ao limite. O cansaço não mais me fortalece. Não consigo mais lidar com essas complexas feridas e suas manias de se tornarem pálidas marcas apenas para ressangrarem. Há algum sentido em continuar insistentemente a subsistir em um mundo sem sentido? Hoje em dia penso que não. Todavia, em algum momento da minha vida, eu achava que sim.

Encontro-me na etapa final do proscênio da vida, onde sua linha se finda teatralmente. Eu temia o desconhecido. Mas, com o passar do tempo, esse sentimento foi se esvaindo. Agora eu estou prestes a conhece-lo. Espero que ele seja receptivo, como é um velho amigo. Que me receba amorosamente como o coração maternal. Em mim não há mais resquício algum de medo. Ora! Dizem que o mundo é um grande palco de teatro e nele somos atores atuando papéis da vida. Mas será que vocês estão cientes do fato de que somos capazes de sair do personagem quando bem quisermos? Recusar os papeis que nos são impostos? Trocá-los? Ou até mesmo se negar a desempenhar papel algum? Opto-me por essa última opção. Estou decidido. Não há nada que possam fazer, a não ser assistir a este espetáculo. Porém, essa ação vocês irão testemunhar somente na cena finalística do quarto e último ato. Até lá, enquanto ainda não sou engolido pelo pano de boca do palco da vida, eu lhes contarei a trajetória de minha existência. Como cheguei aqui? Quem sou eu? Eu imagino que vocês devem estar se perguntando. Tenho muito a contar. Não se preocupem, eu lhes deixarei a par dos acontecimentos que precederam este meu finalístico momento, mas só daqueles que julgo serem relevantes. Ah! Essas memórias, apesar do curto tempo, perecem tão longínquas agora, deterioradas em minha mente putrefata.

Ah! Antes que me esqueça, gostaria de enfatizar que eu não sucumbo o dever de deixá-los impressionados com o que eu tenho a contar. Isso eu não comprometo. Se gostarem, bem. Se não... Amém! Apenas sentirei muito por ter feito perder o precioso tempo de vocês. Se é que se pode sentir algo uma vez no além-túmulo! Enfim, que isso esteja dito previamente. Agora, sem mais delongas...

Bem, eu encarnei nos proémios do século XXI, exatamente no quarto dia do mês de abril. Minha avó acompanhou minha mãe em trabalho de parto. Ela sempre me contava a mesma história: que verificou as horas em seu relógio de pulso e este marcava 04:03 da manhã. Após exato um minuto – que passou em um piscar de olhos, segundo ela – eu nasci. Do aconchegante ventre de minha mãe, eu vim para este nefasto mundo em uma revoltada erupção guinchante, com direito a explosivos lampejos violetamente azuis.

Entre o composto Veter Evanesco e o uno Moriuvenal, este foi elegido. Um pior que o outro, não? Entretanto, tive a sorte de ter sido nomeado com o pior dentre os dois, na minha opinião. Veter Evanesco? Não, obrigado. Minha mãe estava indecisa entre os dois, na verdade. Então ela me contou que, para se decidir, ela cortou duas tirinhas de papel e escreveu cada um dos nomes nelas. Ela pegou o copo vazio que havia vindo com a refeição do hospital e colocou as duas tirinhas, já dobradas, em seu interior, e, com uma das mãos tampando a boca do copo, ela deu quatro balançadas rápidas e retirou uma das tirinhas. Após desdobrá-la, lia-se: Moriuvenal. Ela me contou que seus instintos maternos faziam-na querer mais Veter Evanesco que o escolhido, na verdade. Mas como Moriuvenal tinha saído no pequeno sorteio que fez, ela se conformou com a determinação do destino.

Vocês podem estar se perguntando sobre o meu pai, certo? Até onde sei, ao saber que minha havia engravidado, meu ele a abandonou. Rarefez-se sob a crosta do mundo. Nunca o conheci. E também não me importo. Nunca me fez falta nenhuma. O único momento que eu me lembrava da palavra "pai" era no Dia dos Pais e que, na época dos anos primários, tínhamos que fazermos cartas aos nossos pais. Eu as fazia e dava ao meu avô, quando este ainda era vivo.

MOR (À RIBALTA): DRAMÁTICO ESPETÁCULO DE DEFENESTRAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora