03. tá na hora, tá na hora...

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A primeira coisa que Aurora fez ao chegar em casa, depois de deixar a jaqueta molhada e o capacete nos cabides atulhados de casacos, mantas e guarda-chuvas do minúsculo corredor de entrada, foi gritar:

— Cheguei, família!

— Vem comer, Ari! — gritou a irmã.

— A gente tá na cozinha, filha! — gritou a mãe, aparecendo no vão da porta com uma tigela de alface nas mãos. Ela franziu o cenho para a blusa ensopada de Aurora. — Nem pensa nisso, guria. Troca agora mesmo essa roupa molhada e desce pra jantar. O frango não vai fugir.

Aurora riu, erguendo as mãos em sinal de rendição e subindo as escadas. A Dona Helen não era alguém que se contrariava com facilidade, ainda mais tão próximo da hora do jantar.

Enquanto vestia algo seco, o cachorro da Dona Paula latiu no quintal da casa ao lado, aproveitando a trégua na chuva para fincar as patas miúdas na cerca de metal enferrujado e rosnar para quem passava. Do outro lado, na casa de Jaque, a adolescente gritava com as irmãs menores sobre uma camiseta — "Como assim tu trocou a minha camiseta preferida do Iron Maiden por um saco de balas?! Eu vou arrancar o teu pescoço, Júlia!" — e o mendigo da rua, Seu Brito, atirava latinhas amassadas num carrinho de supermercado. Aurora sorriu para o espelho, alegre por ouvir o barulho de pessoas, de vida, após uma tarde silenciosa e chuvosa na Zona Sul. Desceu as escadas com a pressa de quem tem muita fome, e encontrou a cozinha como mais gostava: cheia.

Sentado na ponta da mesa, estava o pai, com suas mãos gigantescas e de pele grossa pelo trabalho na oficina, as sobrancelhas hirsutas e a barriguinha que apertava a camiseta polo verde. Do lado direito, Fran já puxava uma coxa de frango para o próprio prato. Para nenhuma surpresa de Aurora, ela ainda vestia o uniforme de recepcionista e tinha os cabelos castanhos presos num rabo de cavalo alto. Ainda em pé, a mãe, com o avental que sempre usava na cozinha, tentava conter a fome de Fran, fechando a cara para os modos da filha mais nova e dando batidinhas no ombro dela com o pano de prato. Do lado esquerdo do pai, a avó paterna dividia com o filho a leitura de um rótulo de vinho, ajeitando discretamente a dentadura.

E ao lado de Fran, lindo feito um príncipe de histórias infantis, estava Tim. Com os cabelos negros bem penteados com gel, a camisa social justa nos pontos certos e o sorriso brilhante, similar ao do adolescente em propagandas de sabonetes para combater acne, Tim radiava. E o coração de Aurora, bobo e apaixonado, ficou envaidecido ao receber aquele sorriso. Deu um selinho nele e se sentou ao lado da avó, que sorriu com sua dentadura torta.

— Então, filha — perguntou a mãe, sentando-se entre Fran e marido. — Como foi o dia?

E Aurora contou tudo, do amor que o cara sentia pelo cachorro ao ataque de asma súbito, arrancando risadas da mesa. Enquanto serviam o frango, a salada e o vinho, trocando os pratos e cálices para evitar que qualquer um se levantasse, as risadas tomaram a pequena cozinha. Findo o assunto e o jantar, Fran riu e, com as mãos unidas sobre a mesa, disse:

— A tua capacidade de arranjar confusão nunca vai falhar em me surpreender. E tudo isso porque tu esqueceu de levantar uma placa.

Aurora riu, dando de ombros. Tim balançou a cabeça de maneira divertida, tomando um gole de vinho. O pai apertou os olhos, encarando a filha mais velha.

— Aposto um Cadillac que tu tava com aquele negócio nas orelhas.

— Tu não tem um Cadillac, Roberto — disse a avó, dando um tapinha no braço do filho. — E deixa a guria. Tu, na idade dela, era bem pior.

Todos riram outra vez. Novamente, Jaque gritou com as irmãs, o Seu Brito atirou mais latinhas dentro do carrinho e o cachorro da Dona Paula, enlouquecido pela pequena trégua na chuva, latiu para os meninos que jogavam bola na rua molhada, arrancando palavrões dos jogadores. Ah, os barulhos que só se ouviam nas partes menos favorecidas de Porto Alegre. Aurora não trocaria nenhum deles pelo silêncio mortal e absoluto da Zona Sul.

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