Esta é a história de um momento.
Sacrificamos a maior parte de nossa vida, uma enorme fração de nossa memória, vá lá, quatro quintos, sim, parece apropriado, enfim, quatro quintos de tudo que já foi visto e registrado por nosso corpo e nossa mente, para que o quinto restante componha aquilo que chamamos memória. E não há memória que não seja a simples reprodução de um momento, seja ele curto ou longo. Ando convencido de que as mais duradouras peças desse intrincado sistema sejam as que correspondem aos instantes mais breves. É fascinante e, às vezes, assustador sentir os mesmos minutos sempre voltarem à consciência, serem vividos novamente, dessa vez dentro de si, mas de nenhum modo menos intensos ou reais. Porque o mais sutil dos toques é capaz de causar o mesmo arrepio, quer ele tenha acabado de acontecer, quer tenha sido consultado anos depois de sua primeira aparição num recôndito registro da mente. As mesmas horas, os mesmos minutos, os mesmos segundos. Também ando convencido de que a iteração é um traço inevitável da memória. Hora ou outra, aquilo que vivemos será vivido outra vez. Faz parte de nossa efemeridade o gosto, ou melhor, a necessidade de regurgitar a vida. O que causa tal ímpeto não cabe falar agora, que seja isto pauta para outra discussão, que aliás precisa ser trazida a público, por mim ou por outrem, o autor importa menos que a mensagem neste caso e em vários outros, o que de fato importa aqui agora é que há momentos que se repetem constantemente em nós. Eis, a seguir, a reprodução de um deles. Um documento histórico abstrato e individual. Esta é a história de um momento.
Estávamos nós próximos ao lago, juntos, próximos ao lago, sim, assim começa a transcrição como consta no acervo, com essa repetição enfadonha, mas prezamos pela fidelidade, portanto iremos nos abster de revisões e edições e manteremos o texto como está, enfim, estávamos nós próximos ao lago, juntos, próximos ao lago, sobre o gramado, conversando sobre algum assunto desimportante durante um fim de tarde, anos atrás. O assunto não era importante, porque, se fosse, seria mencionado no documento e, além disso, o que importava de verdade era o conversar; aliás, é comum nessas histórias o verbo ter prioridade sobre o complemento, acostume-se a ver o ato de agir como uma coisa forte. A paleta multicor do céu estava bastante visível, embora um bom bocado de nuvens demarcasse áreas cinzentas e indefinidas na pintura que pairava sobre nós, sentados naquele gramado, naquele lago, naquele fim de tarde, anos atrás. Parecia que ia chover. Estávamos a poucos passos da areia da praia e, quando nossos dois amigos de lá voltaram, em silêncio, fomos nós, também em silêncio, em direção ao mar.
Constituíam atributos importantes daquela breve caminhada a sensação da areia fria em meus pés descalços, o som do vento e sua textura em meu rosto e em minhas roupas, e o fato de eu sempre andar atrás de você ou ao seu lado. Não há necessariamente um motivo para essas observações terem a relevância que têm, não conseguimos encontrar tantas explicações sobre nós mesmos quanto gostaríamos. A mente pode agir de maneiras misteriosas de vez em quando, e, honestamente, talvez seja melhor assim. Andamos em silêncio, passo a passo, ora olhando para o mar, o nosso destino, ora olhando um para o outro, reservando-nos o direito de tecer pequenos comentários sobre o vento, o frio, o céu, a areia e tudo que pudesse ser dito sem que nada realmente o fosse. Ainda estava nublado, ainda parecia que ia chover. Alguns minutos se passaram e havíamos chegado no mar. Permitimo-nos ficar perto o suficiente das ondas para que elas ocasionalmente viessem molhar nossos pés, e em seguida retornassem para casa tendo tocado nossos dedos. Sem consultarmos um ao outro, soubemos que ali estava bom e ali ficamos, de pé.
Não há qualquer menção acerca do teor da conversa que se seguiu, nem deveria ter, isso não é e nem deveria ser uma surpresa para o leitor atento, não houve palavra que pudesse sobrepor as impressões sensoriais daquele momento, o rosto, os olhos, os lábios, os cabelos, o movimento contido e reservado das mãos e dos dedos, o olhar que fitava qualquer direção sem preocupação e que eventualmente era apontado para mim, não para o meu rosto, não para os meus olhos, mas para mim, para dentro de mim, para o que eu era e o que significava estar ali naquele fim de tarde anos atrás. Talvez os olhos, tantos os meus quanto os dela, estivessem buscando respostas. No silêncio do pôr do sol, estava claro que perguntas haviam sido postas à mesa. Ninguém jamais as falaria. Não são coisas que se dizem por aí, não se tratava da conversa corriqueira de antes, não, o que se tinha ali eram pessoas que tinham plena consciência de si e de seus sentimentos e que justamente por isso ali estavam com quem estavam do jeito que estavam, e pela mesmíssima razão era consenso preferir o silêncio à fala, calar-se sempre foi uma alternativa, talvez uma covarde, mas inegavelmente eficiente, e por isso nada se disse nem nada se perguntou.
Demos uma pausa. Cada um pôde voltar a atenção para si mesmo. Pela primeira vez, tive um sentimento novo. Houve angústia antes de reconhecer sua existência e aceitá-lo como parte de quem eu era naquele momento. Mas foi ali, naquela praia, próxima ao lago e ao gramado, naquele fim de tarde, anos atrás, que eu senti pela primeira vez o amor por duas pessoas. Era diferente de ter o coração partido. Porque só se precisa recolher os estilhaços para colocá-los de volta no lugar. É triste, mas com a devida prática o processo se torna uma habilidade bastante útil. Eu não estava com o coração partido, no entanto. Eu o sentia dividido. Como já foi relatado, não foi fácil olhar para a própria cavidade cardíaca e observar duas metades destinadas a lugares diferentes, dois corações onde geralmente se encontra um, há de se convir que não é todo dia que nos deparamos com cenas assim, por mais que não se possa chamar o incidente de extraordinário, inédito ou inesperado. Uma coisa era aceitar que coisas assim aconteciam, eventualmente, é uma triste notícia para se dar à família da vítima, uma fatalidade, se quiséssemos ser mais dramáticos, um acidente trágico, mas todos que jogam este jogo sabem dos riscos a que se submetem, não há inocência na história. Outra coisa, porém, era ter esse sentimento nas mãos e se perguntar o que se deve fazer com ele. Talvez levá-lo a um orfanato, para que alguém que o quisesse pudesse fazer melhor proveito dele; talvez abortá-lo e forçá-lo a sumir e jamais dar as caras outra vez; talvez acatá-lo e conviver com aquilo. Que fazer? Que fazer? Essa era a indagação que martelava em mim naquele momento e era o que me mantinha calado todo o tempo. A cada vez que eu a olhava nos olhos, eu era questionado, com crescente veemência, com a mesma pergunta. Eu não saberia responder. O céu ainda estava nublado. Aquele sentimento me acompanhou durante todo o tempo em que ficamos parados, perto do mar, sentindo os pés suavemente molhados pelas ondas, ouvindo seu barulho ameno e tranquilizador, encarando-nos com a expressão facial de quem vê no outro a si mesmo, mas enxerga de forma turva.
Não nos tocamos. Na solenidade do crepúsculo que contemplávamos enquanto buscávamos por respostas a perguntas incrivelmente duras e inquietantes, decidimos começar a caminhada de volta para o lago, novamente sem a consulta alheia e com o implícito consentimento de que era o que se devia fazer. Falamo-nos ainda menos, olhamo-nos ainda menos, mas ela ainda ia na frente ou ao meu lado. Eu olhava para suas mãos, suas roupas e seus cabelos, que balançavam com o vento frio da noite que se aproximava. Já não estava tão claro quanto quando tínhamos decidido ir, o que era natural, mas a mudança de iluminação me fazia pensar em tudo, se bem que qualquer mudança teria tido o mesmo efeito, um coração inquieto sempre busca motivações e impulsos para começar sua autoanálise e oferecer sua sabedoria ou burrice sentimental, a depender da experiência do amante. Voltamos para o gramado e para o lago e para os amigos e para a normalidade, não houve mais olhares significativos, não houve mais ponderação, não houve mais silêncio, houve apenas o diálogo casual entre quatro pessoas que se conhecem e duas das quais estavam interessadas entre si, pelo menos de modo explícito, e não éramos nós, que se esteja esclarecido. Não choveu, afinal de contas.
A transcrição acaba aqui. Uma nota de rodapé diz o seguinte: Não voltei a sentir o que havia sentido antes durante o resto do dia. Foi apenas à noite, sempre à noite, pouco antes de dormir, que tornei a observar meu coração partido, não em milhares de pedaços e desesperançoso, mas em duas partes, existindo e convivendo pacificamente entre si, o que é pior. Que fazer? Não sei. Que fazer? Já disse que não sei! E quando vai saber? Chega de perguntas por hoje, camarada. O momento já acabou e o documento também, não há mais nada que acrescentar à história, o relato acaba quando o momento acaba, e o momento acabou no momento em que foi dito que não choveu, afinal de contas, e não se fala mais disso, se você quiser saber o resto procure outro documento, mas lembre de guardar no lugar certo depois, você não sabe o trabalho que me deu para deixar tudo do jeito que está. Sinto desapontar, mas também não vai haver nenhuma mensagem ou moral no fim da história. Isto é um acervo de memórias, não uma sessão de terapia. Eu já disse, é parte do quinto da vida que sobra para recordar, ninguém sabe o que aconteceu no dia anterior nem no seguinte, e aqui não fazemos julgamentos sobre o que guardamos. Mas, se lhe serve de consolo, isso vai se repetir. Tudo que aqui foi dito e semelhantes experiências serão relembradas até a morte. Até lá, você provavelmente terá tempo para decidir o que fazer com elas.
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o algoritmo
Poetrysemiepistolar e ébrio. Suspiros e gotas de sentimentalismo escapam de uma garganta asfixiada e pobre de lucidez. Diz a garganta tratar-se de uma travessia sazonal (ou, em piores casos, ininterrupta) entre a felicidade e a melancolia, ambas de propor...