AS PINCELADAS que eu espalhava pela tela, colorindo ela, não eram nada comparadas a necessidade que eu tinha de me colorir.
A metáfora mais louca da minha vida era essa, de longe. Imagine a ironia de ser uma pintora e se sentir vazia, sem suas cores. Qual o sentido?
Há quem diga que todo bom artista é melancólico. É uma realidade: A arte é um escape muito útil para quem vive topando com becos sem saída, dentro de sua própria cabeça. É como se ficasse numa eterna perseguição, correndo e ficando sem saída, sendo pego e correndo novamente. Esse ciclo se repete e você não pode fazer nada, porque é como se você esquecesse o caminho de antes a cada nova tentativa de fuga. Mas, entre um beco e outro encontra-se uma arte: ouve-se uma música; deslumbra-se uma pintura ou fotografia; lê-se um trecho de um texto que faz o tempo parar ou correr mais veloz; avista-se alguém dançando ou imitando um personagem e assim sente que a realidade é uma grande sátira, para então continuar correndo dos seus próprios demônios.
É um pensamento complexo e simplista. Melancólico e otimista. É uma diária dualidade.
— Eu ODEIO quando você faz isso! — Fui tirada do meu pequeno devaneio quando Lua Maria entrou no quarto que eu fazia de ateliê. Kauany entrou atrás, rindo.
— Amor, para de atrapalhar a Ana.
— É, Lua. Para de atrapalhar a Ana. — Repeti. A mulher de cabelos cacheados rolou os olhos. — Vocês são noivas. Essas discussões não deviam ter parado?
— Ela quem me irrita, Ana. Sério.
— Ôh meu raio de luar... Tu sabe que é estressada demais.
— Não me venha com apelidos fofos, Kauany Severo. Nós nos conhecemos fazem 8 anos, então você..
— Vocês poderiam discutir em outro lugar? — Cortei.
Lua Maria franziu o cenho. Kauany segurou repentinamente em suas pernas e a pegou no colo, ouvindo uma mistura de todos os xingamentos disponíveis na mente da noiva. Agora com a saída do barulhento casal que mais parecia um clichê de "opostos que se atraíram", restavamos no quarto apenas eu, Ana Gabriela Severo, e meu quadro.
Morar numa casa mediana com mais 3 mulheres era no mínimo caótico. Quando não acordava de madrugada com os gemidos de Lua ou Kauany — que dormem no quarto a direita do meu — despertava com Estela aos gritos por conta de mais um pesadelo inexplicável (e seu quarto fica a esquerda do meu, o que piorava a intensidade dos sons). Além disso, acontecia de eu estar trabalhando e de repente alguém entrar no meu "ateliê" de supetão. Isso me tirava dos devaneios que garantiam a concentração no meu trabalho.
Ser uma pintora não era nem um pouco fácil, principalmente em 2319, onde quadros de tinta são caros demais para serem pedidos por qualquer um. Não bastando isso, a aristocracia dava preferência a trabalhos feitos por homens, me deixando a milhões de quilômetros do mínimo de reconhecimento. Mas, o que me salva é que a maioria dos homens não confiam em homens, então eu tenho uma frequência maior em pintar mulheres. Os aristocratas tornam aos tempos antigos quando zelam loucamente pela virgindade de suas filhas.
O jeito antiquado da sociedade atual me lembrava muito a era medieval, sobre a qual eu aprendi nas inúmeras aulas de Estela. Eu e Kauany fomos criadas por ela e recebemos Lua Maria de braços abertos (admito inclusive que sempre me perguntei se não era melhor os pais de Lua terem escolhido "Maria Lua"). Eu tive alguns motivos para odiar Lua quando éramos crianças mas agora acho que eles não eram quase nada além daquele ciúme que nós sentimos de nossa mãe, mesmo que Estela não fosse minha mãe.
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Alvo 2319 [Reescrevendo]
Romanceㅡ Começam hoje as buscas por Maricana, a criminosa responsável por 318 obras de pixação espalhadas por Brasília. Maricana surgiu ao fim do ano de 2317 e teve seu auge ainda esse ano, 2319. As pixações de Maricana tem cunho.. (Ele suspira com certo...