único

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O tempo está mau-humorado quando Sabito tranca a porta da frente com um clique.

O sol é um vislumbre de luz fraca amarela e púrpura entre as nuvens cinzas de chuva. Esfriou durante a noite e neblina sobe embotando a visão dos prédios. Gotas de umidade rolam pelas janelas das casas e caixas de correio.

Sabito desce as escadas da frente com as mãos enrugadas de frio dentro dos bolsos de uma jaqueta preta de zíper, procurando a chave pra destrancar a bicicleta e ignorando a nuvem branca de calor se dissolvendo em frente aos olhos.

Ele acha a chave entre um recibo rasgado na borda e embalagens de bala de café amassadas, destranca o cadeado da bicicleta e empurra a rua com a sola do vans preto, se equilibrando. Enquanto as ruas montam e se desmontam ao seu redor, Sabito tenta repassar uma lista de compras mental, pensando em pastas de dentes de hortelã, ovos e talvez alguns vegetais. Ele gosta de brócolis, então acha que vai com isso para o almoço de hoje.

Sabito chega no super mercado quando o sol já é uma meia bola de luz amarela com rosa nas bordas, há riscos de laranja recortando as sobras do azul-marinho da noite, escapando entre as nuvens. Ele tranca a bicicleta no estacionamento, dá pulinhos pra aquecer as pernas e segue pra dentro do mercado.

Piscando os cílios para as estantes, Sabito faz uma careta, tendo certeza de que esqueceu que precisa de algo, mas não sabendo exatamente o quê. Ele pega uma cesta de plástico com um suspiro, passa entre as pessoas no corredor e vai jogando o que acha útil dentro dela. Ele já pegou molho de tomate, macarrão, pacotes de iorgute e dezenas de lamen-instantâneo quando se vê pairando sem rumo com a vontade de pegar algumas oreos.

Onde diabos está? Ele desliza os olhos liláses inchados de sono e cansaço pelos preços etiquetados e prateleiras, ficando cada vez mais impaciente.

As oreos estão no corredor 5, responde a voz macia na mente de Sabito.

Ah, Sabito pensa, soltando o ar que estava segurando. Ele dá um passo no corredor apertando a cesta de compras contra o estômago quando finalmente percebe, todo seu corpo congela no lugar.

Engolindo saliva com força, ele começa a procurar com os olhos ansiosos, não tendo certeza de onde achar, como achar.

Com o coração travado, ele arrisca.

Obrigado?

E é isto. Sabito fica ali parado como um idiota no meio do corredor de congelados, pensando em todas as notícias, todas as conversas que teve sobre isso antes nas quais encolheu os ombros e não deu o valor que deveria ter dado, porque se talvez tivesse, ele então saberia o que fazer numa situação dessas. Mas Sabito, como o arrogante e cético que é, não deu ouvidos a nada disso e não pode fazer nada além de se arrepender.

De nada. Aí está, Sabito pensa, ou acha que pensa. Ele está tão confuso agora; meio assustado, meio sobrecarregado. Ele não sabe o que fazer, onde enfiar as mãos, fazer as pernas mexerem.

Ei, não surte. A voz em sua mente o puxa de volta, e então acrescenta, reconfortante; isso não precisa significar nada, tudo bem?

Sabito expira e uma quantidade de ar quente é espamarrada pra fora em uma sequência de nuvens brancas de calor, ele sente como se pudesse derreter com elas bem ali, se dissolver no ar.

Você quer me ver? Sabito pergunta, com uma careta e muita ansiedade acumulada.

Bem, eu estou no corredor com as oreos.

Então, você quer?

Eu estou curioso. Sabito gosta da ênfase, porque ele também está.

Bem, Sabito encolhe os ombros, se sentindo meio idiota e deslocado, mas a essa altura do campeonato, ele já não pode fazer nada.

Acho que eu também estou.

Legal...

Há uma pausa, e no espaço dentro dela, Sabito lê as etiquetas na prateleira, soletrando o preço das ervilhas em conserva, está em promoção.

A voz floresce para acrescentar, apenas um momento depois:

Venha me encontrar. Estou esperando você.

Sabito quase tropeça nos próprios pés na pressa pra chegar até lá.

Ele encontra um menino balançando no lugar, beslicando nervosamente um pacote de oreo. Seu cabelo é preto, curto e aponta pra todos os lados. Ele veste um casaco moletom fofo e algo em Sabito amolece.

A chegada de Sabito no corredor espalha uma silhueta escura no chão de azulejos brilhantes do supermercado, fazendo o garoto piscar para a sombra antes de encontrá-lo na metade do caminho.

— Oi, — Escapa de Sabito antes que perceba, ele olha pra muita coisa ao mesmo tempo antes de voltar pro rosto do menino.

— Eu peguei pra você. — O garoto estende o pacote em sua direção, bochechas manchadas de fúcsia e olhos azuis inquietos.

— Obrigado. — Sabito agradece com um sorriso, o estudando com cuidado. Ele não quer ser rude, não quer olhar demais.

O garoto chupa o lábio inferior, esfregando as palmas suadas nos jeans. Ele está lutando pra falar, fazer as engrenagens girarem. Sabito deve ajudar? Conduzir a conversa? Ele não sabe como. Faz tanto tempo que não se envolve em interações sociais, meio que desaprendeu.

— Meu nome é Sabito.

Parecendo aliviado, o menino se apresenta: — E eu sou o Giyuu.

Giyuu. É um nome bonito e Sabito gosta de como ele soa em sua mente, por isso o repete em loop por um minuto inteiro.

Giyuu. Giyuu. Giyuu. Giyuu...

As bochechas do garoto acendem em vermelho flagrante e Sabito nota seu erro.

Opa.

A boca de Giyuu se dobra num sorriso e ele pisca, abaixando os cílios e encolhendo os ombros.

Não foi nada.

Sabito balança a cabeça, decide ser sincero:

Eu não sei o que dizer agora, sou meio ruim nessas coisas de interação.

Ele vê Giyuu balançando a cabeça também e se pergunta como é ver de fora, como uma terceira pessoa na sala. Dois meninos parados no corredor, flutuando um ao redor do outro em silêncio e acenando. Deve ser estranho.

Eu também não.

Procurando os olhos lilases, Giyuu derrama em sua mente, hesitante, não deixando o olhar de Sabito escapar.

Você está decepcionado?

Sabito aperta os olhos.

Por que estaria?

Não sei, talvez porque não sou uma garota?

Não me preocupo com isso. Não mais, ele quer acrescentar, mas decide melhor. Seu caminho de autodescoberta e aceitação foi cheio de tropeços e dor, Giyuu merece a parte bonita que veio depois. Quem sabe algum dia, Sabito pinte o plano de fundo, deixe ele ver todo o processo. Ele quer que esse momento seja bom e leve, por isso deixa pra lá e pergunta:

E você? Está decepcionado?

O sorriso que parte a boca de Giyuu agora é amplo e bonito, deixa todos os dentes expostos e acumula dobras nos cantos dos olhos azuis. Faz algo remexer no estomago de Sabito e ele sente calor e gelo ao mesmo tempo, se pergunta se é assim que se sente as borboletas.

Não.

....

isso começou sendo um exercício bobo pra treinar minha escrita e terminou numa oneshot inspirada num prompt que vi no tumblr sobre soulmate au😶

morning dew Onde histórias criam vida. Descubra agora