Conto 2 - Desembrulhando no natal - Adriana Igrejas

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Desembrulhando no natal

Adriana Igrejas

 Minha história começa e termina no Natal.

Eu tinha oito anos, mas me lembro de tudo com a mesma clareza com que recordo o último Natal. Bem, talvez até mais. É notável como certas imagens jamais se esvanecem com o tempo, enquanto outras, por mais recentes que sejam, perdem-se em nossas mentes. Tudo tem a ver com relevância, suponho, porque certos momentos em nossas vidas são mais importantes que outros. Pois bem, foi quando eu ganhei um kit de pintura, com um cartão lindo que dizia: “Para minha querida neta, Georgiana − uma futura artista”.

Foi presente de minha avó materna, portanto, uma surpresa. Como lá em casa nem eu nem meus irmãos menores, ninguém acreditava em Papai Noel, já sabíamos o que ganharíamos de nossos pais, pois já tínhamos feito o pedido e a negociação do pedido.  É, negociação. Quando seus pais dizem que o que você pediu é muito caro e te dão as opções do que eles poderiam realmente adquirir. Então eu já sabia exatamente o que esperar deles. Mas não de minha avó.

Ela me surpreendeu, porque eu era tida como uma menina levada, que nunca teria paciência para nada que exigisse concentração.

A ideia em si me fascinou. Senti-me uma artista só por possuir aquelas telas, o cavalete, as tintas e os pincéis. Preencheu-me de orgulho, satisfação e vaidade a possibilidade de que minha querida avó me supusesse capaz ou mesmo digna de efetivamente criar algo com aquelas ferramentas. Esqueci inteiramente os outros presentes e não via a hora de acabar toda a confusão na casa, ver-me livre de todos os primos, tios... ter um pouco de paz, para começar minha vida artística.

Meus primeiros esboços foram primitivos e infantis. Sei bem, porque os guardo até hoje como recordação. Eles me renderam muitas críticas negativas de meus irmãos e elogios falsos de meus pais. Mas minha avó fora sincera e profética: “Ainda precisa melhorar, mas é o começo...”.

Para o desgosto de minha mãe, ela estava certa. Jamais parei de desenhar ou pintar. Tornei-me uma artista e, quando fiz a escolha pelo curso de Pintura na Escola de Belas Artes da UFRJ, tive que enfrentar um verdadeiro conselho familiar. Todos se reuniram com a urgência, solenidade e gravidade de uma situação crítica, como se fossem chefes de estado decidindo o destino de uma guerra...

− Pelo menos faça a Licenciatura! – implorava minha mãe. – Assim vai poder dar aulas!

Meu pai parecia menos esperançoso e demonstrava uma certeza mediúnica do meu fracasso. Meu tio balançou a cabeça e deu um veredicto terminal:

− Vai passar fome...

Atravessei um período de crise e quase depressão por causa dos ataques ferozes das pessoas que mais me amavam no mundo. Chorei, sofri, gritei, esperneei. Discuti por tudo e com todos.  Fiquei de mal com minha mãe, evitava falar com meu pai, atirei coisas em cima de meus irmãos. Ninguém me apoiava. Minha saudosa avó, a única na família que me possivelmente me compreenderia, falecera dois anos antes. Mais do que nunca, senti a falta dela.

Depois de muita revolta, entreguei-me a uma fase de prostração e quase fiz a vontade deles. Eu já tinha passado no vestibular, feito a matrícula para o curso de Pintura, mas concordei em fazer uma segunda chamada de vestibular para uma universidade particular, para cursar Direito, como meu pai sonhara. Cheguei mesmo a fazer a prova... Daí, só de ler a respeito do que eu estudaria naquele curso, sentia enjoo e vontade de morrer. Mandei tudo às favas e comecei meu curso nas Belas Artes. A faculdade era pública e gratuita, felizmente, porque tenho certeza de que minha família jamais pagaria para eu estudar Pintura.

Eu, Você e o Natal - Contos inesquecíveisOnde histórias criam vida. Descubra agora