sobre sumiços e giras de erê

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O dia passou frio mesmo com o sol quente, Mariana estava sentada no meio fio na frente de casa, uma construção de alvenaria inacabada em pálidos tons de cinza chumbo, a calçada de lajota vermelha estava quente pelo sol do meio dia e Mari nem se lembrava porque tinha se sentado ali. Fazia um ano que Mateus estava desaparecido, Mariana podia sentir lá no fundo do peito uma pontada forte toda vez que alguém falava sobre seu irmão, era doloroso ver todos com aquelas camisetas brancas com fotos dele sem compreenderem porque ela parecia tão calma o tempo todo, não expressava tristeza alguma e as pessoas não entendiam como ela não falava sobre nada do que realmente estava sentindo, doía e ela sabia como doía, mas a dor deveria interessar somente a ela, pois era seu Mateus, seu irmãozinho que ela tanto esperou chegar e que agora, oito anos depois de sua vinda para a terra simplesmente desapareceu quando foi jogar bola na rua. 

E quem teria tanta maldade no coração para sequestrar uma criança? Aliás, Mariana acreditava que “sequestro” é o nome que se dá a desaparecimentos que dão manchete no jornal da hora do almoço e que causam comoção na cidade toda, contudo parecia que como num passe de mágica as pessoas, a polícia, os parentes passaram a ligar menos para o sumiço dele, como se lentamente deixassem de se importar, talvez uma vontade desesperada de esquecê-lo para que a dor fosse menos intensa. Mas o que fizeram com Mateus foi o que? Roubaram-no? Mas Mateus não era uma coisa para ser "roubada", era alguém, um alguém que gostava muito de jogar bola, ia nos jogos do Coritiba com seus tios sempre que possível e dizia pra todo mundo ouvir que um dia seria jogador de futebol. Mateus não foi roubado ou sequestrado, ele sumiu, simplesmente sumiu e Mariana já não aguentava mais a dúvida e a incerteza do paradeiro de seu irmão. Mari sempre teve um fraco pelo oculto e a magia e para ela era quase impossível não imaginar que Mateus teve sua morada redesignada por Deus, por Alá, por Oxalá ou qualquer outro ser superior e por falar em Oxalá era dia de visitar a tia Luísa e o temido tio Manuel e só Oxalá na causa pra fazer Mariana relaxar e não pensar no medo que sentia sempre que chegava lá. Não seria para qualquer um que Mari abriria seu coração pra dizer como estava se sentindo, muito menos compartilhar suas teorias sobre o desaparecimento de Mateus mas no terreiro de Yá Luísa ela se sentia segura.

De longe ela já ouvia os atabaques sendo amaciados e os ogãs repassando o ijexá na casa de tia Luísa que ficava na rua de cima, era tão alto que ela ouvia dali mesmo na calçada de sua casa, Mariana já tinha roído as unhas e comido a carne envolta das mesmas de tanta ansiedade, dia de terreiro era dia de bronca. Já passava das cinco horas da tarde e Mari se encaminhou pela rua quebrada a beira do rio Belém até a casa de sua tia.

Era dia vinte e sete de setembro, festa de Cosme e Damião e tia Luísa tinha deixado todos os saquinhos de doce prontos para a entrega para a criançada que chegaria no terreiro no fim de tarde, Mariana entrou no quintal se esquivando das pessoas vestidas de branco, agarrava uma saia aqui e ali no varal pra poder fingir que estava fazendo algo de importante e permanecer ocupada para que ninguém a chamasse pra dentro da casinhola do terreiro onde estava o tão amedrontante Tio Manuel.

O terreiro de tia Luísa era um lugar bem grande, um quintal vasto com chão de terra batida, em algumas partes podia-se notar uns matinhos crescendo aqui e ali, do lado direito da casa um grande pé de arruda crescia enlaçado a um frondoso pé de guiné fazendo uma dança bonita entre suas folhas cheirosas, havia uma casinha preta e vermelha de madeira perto do portão do lado esquerdo da casa onde se guardavam as imagens e firmezas dos Exus, o terreiro era um sobrado amarelo vivo com alpendre cheio de samambaias em suas colunas e telhas, do lado direto da casa perto dos pés de guiné e arruda havia um pequeno viveiro de carpas feito num tanque de pedra com água cristalina caindo de uma mini cachoeira apoiada no alto do mesmo tanque, esse "laguinho" sempre encantou Mariana, era razoavelmente grande para se estar numa casa, mas tia Luísa era protegida “pela tal da Oxum” como Mateus dizia por entender pouco da religião da tia; Mari chegou perto do tanque ouvindo o som ligeiro e doce das águas da cachoeirinha batendo no fundo do tanque suavemente, os peixes multicoloridos a hipnotizavam tanto que ela não notou a figura baixinha e gorda se aproximando, era tia Luísa vindo de fininho abraça-la:

Sangue de CaiporaOnde histórias criam vida. Descubra agora