Capítulo Único

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"Está feito."

A mensagem apareceu no visor iluminado do celular. O tom sonoro da mensagem também chamou atenção das duas pessoas que lhe faziam companhia. Konstantin parecia indiferente, agasalhado da cabeça aos pés, e escorado num dos batentes da varanda do fundo. Na pequena mesa composta apenas de duas cadeiras, estava ela e Carolyn, ambas também protegidas da brisa desagradável da noite inglesa. Esta lhe fitava com uma curiosidade comedida, ansiosa com o desfecho do que ocorria no interior da casa. Precisamente, no andar superior.

Foi silencioso.

Eve aguardou gritos, correria, coisas quebrando, pedidos de ajuda. Mas nada disso veio. É errado sentir-se decepcionada por não escutar o desespero alheio até o último sopro de vida de uma pessoa? Há quanto tempo não questionava a própria moralidade? Mas se tratando da sua vida nos últimos três anos, Eve tratou esse aspecto da mesma forma que o seu casamento: justificativas ridículas, negação, indiferença até chegar ao estágio do foda-se. Então sim, foda-se a moralidade e foda-se o seu casamento. Em algum lugar no segundo andar da casa estava o corpo de Paul, sem vida e Eve não conseguia fazer com que alguma célula do seu corpo de importasse com isso. Era uma reação completamente oposta a Roma, quando fincou um machado nas costas de Raymond.

Sim, Villanelle tinha manipulado a situação inteira. E não, não era Eve lá em cima tirando a vida de uma pessoa. Havia essas nuances.

Mas também havia similaridades: ciência de que a vida de uma pessoa seria tirada. No estupor do momento, Eve teve que cravar o machado em Raymond para que pudesse "salvar" Villanelle. Então, por mais que tenha sido um reflexo/desespero/instinto, a decisão de ceifar a vida de alguém estava feita e ela seria assombrada com isso dali por diante. No atual contexto, Eve sabia que Paul tinha sido ludibriado para aquela casa para fornecer informações – a pedido de Carolyn – e uma vez que ela estivesse satisfeita, Villanelle estaria encarregada do resto. Esse era o acordo. O plano.

Dois dias antes, quando Carolyn lhe contatou e informou que Villanelle tinha lhe procurado para aceitar a proposta feita na prisão, Eve – de forma muito inocente – achou que sua ex-chefe colocaria Oksana num programa de proteção, identidade nova em troca de informações interna sobre a Organização. Os termos ainda estavam sendo discutidos entre ambas as partes, mas Carolyn queria eliminar Paul e não queria sujar as mãos. Villanelle entrou apenas para terceirizar o trabalho. O que foi oferecido em troca, ela não tinha idéia.

A porta dos fundos se abriu e loira apareceu, com o visual intacto. Nenhum fio de cabelo fora do lugar, nenhum respingo de sangue no casaco amarelo de gosto questionável. Estava ofegante, Eve percebeu. Tomou alguns segundos para procurar qualquer vestígio de alguma emoção aparente no rosto dela, estreitou os olhos e viu as pupilas dilatadas. Qual era a razão? Adrenalina, medo, excitação?

"O corpo está embalado num saco preto.", ela falou se dirigindo para Carolyn.

Eve viu os lábios da mulher se curvar levemente, evidenciando satisfação. Entendeu ali, naquele instante, que ela foi a última pessoa a mandar a própria moralidade para a casa do caralho. Um grupo de pessoas de caráter duvidoso, egoístas e tratando vidas alheias como meros números. A sensação de pertencimento foi instantânea.

"Muito bem.", Carolyn se levantou aprumando o casaco contra o corpo. "Acho que é aqui que nos despedimos.", completou estendendo a mão para a russa. Eve assistiu a cena se desenrolar com confusão explícita.

"Divirta-se em Cuba, velho rabugento.", Villanelle caminhou, bem mais relaxada, em direção a ele e o abraçou. Konstantin bancou o difícil, mas sua bravata não durou mais do que alguns segundos. Ele ergueu a mulher com facilidade do chão fazendo-a gargalhar.

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