Lucca guardou mais dois pratos no armário, ouvindo a respiração pesada e o batucar nervoso dos dedos dela do outro lado da linha. Suspirou, mordeu os lábios e tentou encontrar as palavras certas para acalmá-la. Gabi estava ansiosa. Sempre foi, na verdade, mas nos últimos dias havia piorado, e passava noites em claro pensando demais em coisas que não deveria. Ele sentia saudade dos olhares penosos dela, do cheiro da curva de seu pescoço e de seu beijo doce que o fez refém no minuto em que a teve nos braços pela primeira vez. Ouvir a voz dela era um presente para seus dias nublados de trabalhar em casa e cuidar dos avós.
— Gabi. — chamou no tom mais calmo que conseguiu alcançar.
— Hm... Oi.
— Cê tá bem? — terminou de guardar os pratos e limpou as mãos. Tirou o celular do viva-voz e o carregou até seu quarto, passando pela sala para ver se os avós haviam dormido com a tevê ligada. Ainda estavam acordados.
— Tô. Só tava pensando... — a voz entrecortada evidenciou o começo de choro.
— Pensando no que? — ele deitou na cama, deixando a porta aberta.
— Nem sei... Só tava, sei lá, pensando sem nem saber no que...
— Tô com saudade de você.
Ela suspirou num fungo de choro.
— Eu também. É difícil dormir sem saber que vou te ver assim que acordar. Só queria que você estivesse aqui, e as coisas voltassem a dar certo...
— Eu sei. Mas uma hora vai acabar, tá bom? E aí a gente vai se ver e eu vou te abraçar e não vou te soltar mais. Fiquei preocupado com você ontem... Não consegui dormir.
Gabi tentou rir, mas Lucca sabia que ela estava chorando. Ficaram em silêncio por alguns instantes. Ele fechou os olhos e se contorceu com a imagem dela sofrendo.
— Gabi, ei...
— Oi...
— Eu te amo, tá? Eu sei que é difícil, mas a gente vai conseguir vencer isso tudo. Não chora, por favor... Doí quando você... Quando você chora.
Ela respirou fundo, recobrando o ar. Lucca fez carinho no cachorro, um poodle meio vira-lata que encontrou em um desses seus passeios com Gabi.
— Desculpa. É só que... Eu queria te ver hoje. — ela fungou — Sentir seu cheiro hoje e esquecer de todo resto hoje. E eu sei que a gente não pode, não tô insinuando nada, é que... Hoje, eu sei lá, a saudade ficou mais forte e cada dia fica pior conviver com isso e... E... E-eu te amo tanto que tá doendo não te ter por perto.
Lucca apertou os olhos, sentindo seus limites desmoronarem, e estalou a língua num gesto nervoso, tendo uma ideia boba, mas seguiu em frente.
— Eu sei. Olha, vamos fazer assim.
Ele se levantou. O cachorro o seguiu pela casa. Os avós já dormiam. Cobriu-os com uma manta e saiu pela porta dos fundos. No quintal, deitou-se na grama verdinha e encarou o céu.
— Vai pro seu quintal e deita na grama, virada pra aquela casinha de cachorro.
Ela riu, sem entender, seguindo as orientações dele.
— Tô aqui.
— Tá. Agora... — ele parou e colocou o celular no viva-voz ao seu lado, sobre a grama — Agora deixa o celular no viva-voz no seu lado... Direito.
— Pronto.
— Agora é como se a gente tivesse junto.
— É. — a voz trêmula.
— Tá frio aí fora?
— Não. Tá gostoso.
— Olha pro céu. Tá lindo, né?
— É...
Ela suspirou, o peso da saudade lhe machucando os ombros.
— Lucca...
— Oi.
— Canta aquela pra mim...
Ele sorriu, fechando os olhos.
— Tá...
Ele ouviu a risada contida dela.
— Hoje eu preciso te encontrar de qualquer jeito, nem que seja só pra te levar pra casa depois de um dia normal... Olhar teus olhos de promessas fáceis e te beijar a boca de um jeito que te faça rir...
— Que te faça rir...
— Hoje eu preciso te abraçar, sentir teu cheiro de roupa limpa, pra esquecer os meus anseios e dormir em paz... Hoje eu preciso ouvir qualquer palavra tua, qualquer frase exagerada que me faça sentir alegria, em estar vivo. Hoje eu preciso tomar um café, ouvindo você suspirar... Me dizendo que eu sou o causador da tua insônia, que eu faço tudo errado sempre, sempre...
Cantaram juntos. Gabi observou a lua e sorriu com os olhos.
— Hoje preciso de você, com qualquer humor, com qualquer sorriso. Hoje só tua presença, vai me deixar feliz, só hoje...
Lucca encobriu um sorriso gigante que subiu de seu coração até a boca. Fechou os olhos, pensando em como queria que Gabi estivesse ali do seu lado, e como, de uma maneira estranha, ela realmente estava. Em seus sonhos, segurando sua mão. A imagem nítida ao seu lado na cama com aqueles olhos brilhantes e o riso com gostinho de lar. Ela brincava com as mechas de seu cabelo enquanto o sol banhava seu rosto a transformando numa figura de graça inigualável. Ele suspirou, ainda sorrindo.
— Tô com sono.
— Vamos voltar, pode ser?
Gabi murmurou e assentiu, ainda que ele não a pudesse ver.
Caminharam para dentro cantarolando, e Gabi cantou aquela do Nando Reis que o Lucca gostava tentando imitar a Cássia Eller, e ele riu. Chamou os avós para dormirem no quarto. Depois de certa relutância, eles foram, reclamando que Gabi sempre ligava tarde e nunca podiam conversar direito. Quando Lucca garantiu que estavam quentinhos e adormecidos, voltou ao quarto e jogou-se na cama.
— Lucca.
— Oi.
— É normal?
— Hm?
— É normal, tipo, sei lá, hum, é... Sentir uma coisa tão... Não sei, tão... Tão enorme, tão... Feliz, tão... Eu não... Cê sabe que eu sou péssima nisso.
Ele riu pelo nariz.
— Se é normal sentir tanta coisa boa de uma vez só por ouvir sua voz? Sentir um negócio entalado na garganta, aquele negócio de quatro letras que ataca quando quer e que tá sempre aqui quando eu te ouço, te vejo, te amo?
— Isso. É isso. Cê fala tão bem que eu fico bobinha.
— Acho que não é tão normal, mas a gente... A gente meio que já tá acostumado com esse turbilhão, cê não acha?
— Acho que não. Nunca vou me acostumar com isso. É bom demais pra explicar e ficaria chato escrever, né? Mas... É. Pra mim sempre vai ser como se fosse a primeira vez.
— Hm... É. Tu tá certa. Um novo que se repete.
— Isso. — ela bocejou.
Lucca encarou o teto. A respiração de Gabi foi ficando mais calma, e ele soube, um tempo depois, tagarelando baixinho sobre a teimosia dos avós, que ela havia dormido. Ouviu aquela marca de paz por alguns minutos e logo caiu no sono também, com o coração quentinho e a boca entreaberta.
Sonharam com um hoje que veio muito depois. Gabi e Lucca conversavam alegres, e, ao fundo, tocava Só Hoje. Eles se entreolharam com um sorriso bobo, enquanto memórias de lua e conversas distantes os atingiam em cheio.
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Só Hoje | #PjBrasileirando
Diversos"Eles se entreolharam com um sorriso bobo, enquanto memórias de lua e conversas distantes os atingiam em cheio." | conto para o Projeto Brasileirando, disponível em meu perfil. | baseado na música Só Hoje, Jota Quest. | respirarte © Ellen Lima | 06...