Capítulo Único

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AVISO: a história contém gatilhos de suicídio e pensamentos depressivos. Se você ou alguém que você conhece pensa em cometer suicídio ou qualquer coisa próxima a isso, por favor, procure ajuda contatando o CVV (Centro de Valorização da Vida). Informações sobre o atendimento ligando para 188 (ligação gratuita) ou acessando o site https://www.cvv.org.br


Ela separava seus dias em duas categorias: os vazios e os depressivos.

Nos dias vazios, a única certeza que tinha era a de que possuía um buraco em seu interior, e todos os seus sonhos, ambições e sentimentos antigos se afundavam nele. Desejava, com todas as forças que restavam em sua mente exausta, estar triste. Queria que lágrimas escorressem por sua face e molhassem suas vestes, os olhos vermelhos inchados e o nariz molhado eram ao menos lembretes de que restava algo além da lugubridade que corroía cada parte de seu corpo aos poucos. Assim saberia que estava viva e era, sim, alguém.

Nos dias depressivos, simplesmente não existia. O que lhe restava era um corpo estagnado e imutável. Não conseguia fazer o mínimo, e observava as horas passarem diante de seus olhos como se estivesse contemplando a vida de outra pessoa.

Num desses dias, no desespero de fazer-se sentir algo - qualquer coisa -, jogou um, dois, três, quatro comprimidos dentro de sua própria boca. Virou o vidro até que não restasse mais um medicamento sequer. Os engoliu em seco, sentido-os rasparem as paredes de sua garganta, fazendo-a lembrar-se de que ainda existia.

Quando percebeu o que estava fazendo, sentiu as antes desejadas lágrimas descerem por sua face. Seu interior não estava mais vazio, ele ardia como o inferno e ela se deu conta de que talvez não houvesse mais como voltar atrás. Embora ela conseguisse ouvir com clareza os ponteiros do relógio indo de um lado pro outro, de um lado pro outro, não poderia dizer com exatidão quanto tempo passou; era como se o tempo houvesse deixado de existir e tudo ao seu redor movia-se com uma lentidão dolorosa, devastadora.

Enquanto questionava-se se havia feito a coisa certa, se deveria alcançar o telefone ao lado de sua cama e implorar por ajuda ao primeiro número que conseguisse discar, uma bela mulher insólita entrou por sua janela, tomando o tempo que antes parecia inexistente todo para si, movendo-se como se fosse o próprio vento e fizesse parte do ar que agitava as cortinas abertas da única janela do cômodo. A desconhecida estava trajada com as cores da noite e asas lúgubres despontavam de suas vestes. A expressão serena que carregava consigo fez a garota se perguntar: eu estou enlouquecendo?

Ela nunca havia sido o tipo de pessoa que acredita num amor a primeira vista, acreditava em construir e desenvolver sentimentos rasos até que eles tornassem-se profundos como os de romances famosos. No entanto, encarando o rosto da mulher em sua frente que observava pela primeira em sua vida, sentiu vontade de entregar-se à desconhecida como jamais havia sentido com um outro alguém.

Mas, enquanto olhava no fundo das íris escuras da dama de preto, tinha a sensação de que os olhos castanhos tornavam-se buracos profundos e sem fim, sugando para dentro os últimos resquícios de vivacidade que restavam no ambiente.

Um dia, em sua adolescência, havia lido um livro que dizia que a hora de nossa morte é um dos momentos em que somos estrelas de cinema. Nunca estivera tão perto da morte antes e ainda assim nunca sentira-se tão miserável. Seu corpo, que tornava-se cada vez mais gelado e inútil com o passar dos segundos, estava estirado ao chão como se ela fosse um nada, uma pequena partícula de poeira que alguém esquecerá de varrer para dentro da pá na hora da limpeza semanal. Ela não tinha amigos próximos há um tempo e cortará os laços com seus parentes há anos, então quando morresse, seria só isso: o fim. Ninguém procuraria por ela e ninguém saberia das circunstâncias tristes que a levaram a tomar sua última e desesperada decisão. A única coisa que queria era não ser apenas mais uma pequena molécula vagando sozinha por toda a imensidão do universo.

Pensando nisso, ela estendeu os braços e agarrou com a pouca força que lhe restava a mulher insólita que invadira seu quarto há pouco. Quando as mãos gélidas tocaram suas bochechas manchadas pelo choro recente, soube que finalmente estaria em paz. No momento em que seus lábios juntaram-se em um ósculo efêmero, um último suspiro sofrido esvaiu-se por sua boca.

ThanatosOnde histórias criam vida. Descubra agora