Capítulo único

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São Paulo, Abril de 1986.

Um ano após o fim da ditadura militar no Brasil, a sociedade ainda procurava se adaptar à nova fase em que estavam entrando. O modelo extremamente excludente da população, deixava nítido o grande contraste social e econômico existente, e não só isso, com o surgimento do movimento LGBT no final da década de setenta, a sociedade parecia ainda mais dividida.

O fim do regime militar não significou o fim da censura totalmente. A estrutura patriarcal, machista e hétero normativo da época, procurava invisibilizar totalmente qualquer movimento que não seguissem o padrão. Até mesmo dentro do próprio movimento LGBT, encontrava-se discriminação contra as mulheres lésbicas. Além de lutar pelo direto ao amor livre, era necessário se manter lutando por seus direitos como mulheres.

Em meio a todas essas dificuldades existentes, Rafaella e Bianca lutavam por algo que, para elas, era a maior razão para se livrar de todas as amarras impostas por pessoas insignificantes que se julgavam donos do mundo, o amor.

Se conheceram em 1974, quando Rafaella tinha dezessete anos e Bianca quinze. Estudavam na mesma escola, e apesar da pouca diferença de idade, possuíam amigas em comum.

Oposto, essa era a palavra que definia com excelência as duas garotas. Enquanto Rafaella era filha de pais extremamente rigorosos, criada sobre as leis do catolicismo, e obediente, Bianca era um espírito livre, que por muitas vezes desafiava os pais, e por muito pouco não se considerava a maior inimiga do sistema opressor em que vivia.

Claro que, apesar do antagonismo existente, o espírito livre de Bianca corrompeu a alma devota de Rafaella. E mesmo que não admitisse, não demorou muito para que dentro do seu coração, um altar fosse erguido em adoração a garota mais nova. Bianca era toda a liberdade que Rafaella almejava em sua vida.

Em 1978, veio a primeira separação dolorosa entre elas. Rafaella, então com vinte e um anos, foi obrigada a casar-se com um homem que não amava. No primeiro ano de casamento, o rapaz era respeitoso, ou ao mesmo, era isso o que todos achavam. Saber que sua esposa não o amava, e ainda pior, parecia ter o seu coração entregue a outra pessoa, fez com que Leonardo agisse como a maioria dos homens daquela época, de forma opressora.

Bianca, com apenas dezenove anos, se viu perdida. Entendia que sua visão do mundo era à frente do seu tempo. Sabia que o amor que ela nutria por Rafaella jamais seria aceito. Em uma sociedade tão apodrecida, a ideia de um sentimento tão livre e não convencional era totalmente repudiada.

Os anos e os eventos se sucederam. Bianca, em seu auge da rebeldia contra tudo o que acontecia em sua vida, entrou no movimento punk que começava a estourar no Brasil como uma forma de resistência a ditadura. E Rafaella, em pouco tempo após o casamento, ficou viúva. Ela não considerava estar feliz com isso, afinal, ela jamais poderia regozijar-se com a morte de alguém, mas não poderia inibir a esperança de ter um novo recomeço.

Quando finalmente se permitiram uma entrega, em 1982, pouco menos de um ano após assumir um novo estado civil, a família de Rafaella acabou por descobrir, e então, ocorreu a segunda separação dolorosa entre elas. Era inaceitável para eles que uma mulher viúva, devota a igreja, e de família tradicional, se permitisse viver um amor com outra mulher.

Três longos anos, esse foi o tempo que Bianca e Rafaella tiveram que passar reprimindo o sentimento tão belo que existia entre elas. As ameaças eram constantes. O medo não era mais um sentimento, era um componente quase orgânico que despertava reações inimagináveis dentro delas.

Enquanto Rafaella vendia sua alma a devoção, apenas implorando ao criador para que pudesse viver aquele amor que tanto queria, Bianca parecia pensar que Deus havia se esquecido de todos os seus pedidos. Estavam em pontos extremos. Tão distantes.

É chegada a nossa hora | One shot RabiaOnde histórias criam vida. Descubra agora