Capítulo 1

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Eu era quebrada. Tinha vindo com defeito de fábrica. Essa é a herança que ganhei do mundo. Ser defeituosa. Eu era como um brinquedo quebrado. Não importava quantas vezes fosse mandada ao conserto, nunca parecia funcionar adequadamente. Se eu era disfuncional ou a porra do mundo que era corrompido, não sei até agora. Eu tentava. Tentava. Mas não conseguia. Não conseguia me sentir em casa neste mundo. Não conseguia seguir a manada. Não mais. O irônico era que eu achava que conseguiria mais do que ninguém porque eu seria a mais forte. Mas estava quebrada.

Eu tentava. Tentava. Mas não conseguia. Eu tentava por um tempo. Por um tempo, achava que ia dar certo. Mas logo vinha aquela espécie de pane. Meu cérebro entrava em crise, e logo nada mais fazia sentido. Eu ficava tão sufocada com tudo que não conseguia respirar. Eu era como um brinquedo quebrado. Funcionava por um tempo e logo travava.

Melhor investir em um brinquedo novo porque este aqui não tem conserto. Vai direto para o descarte da linha de produção. Era o que dizia o laudo da assistência técnica na minha imaginação. Neste mundo, comprar um produto novo é mais vantajoso do que insistir em um com defeito. Oh, não! Logo ela. Tínhamos tantas expectativas. Ela era nosso prodígio. Uma pena. Um verdadeiro desperdício. Podia ouvir os lamentos em minha cabeça.

Esses lamentos tentavam entender como fui parar de aluna promissora para um completo fracasso no período de dois anos. Essa era a dúvida que mais rondava a minha cabeça no começo do meu último ano do Ensino Médio em uma das melhores escolas particulares da cidade. A garotinha de 14 anos que pisou naquela escola pela primeira vez teria vergonha e, principalmente, raiva dessa versão fracassada de 16. Era para você estar no auge, Clara. O que você fez com a minha vida?

— O grande problema da humanidade hoje em dia é a não reflexão. O indivíduo só é capaz de apertar botões. — desabafou a sempre cansada professora Flávia, retirando-me dos meus devaneios.

Será que essa mulher ali na minha frente considerava-se um fracasso? Será que sentia a mesma sensação de ter estragado a própria vida? De ter deixado escapar a grande chance da vida entre as mãos? Será que ela amargava o fato de ter um emprego miserável aturando as merdas de um bando de babacas privilegiados? Eu quase sentia pena dela. Quase.

— Ou melhor, só é capaz de tocar a tela do celular. Se vocês usassem um pouco da energia que gastam na busca por curtidas para ler coisas além de postagens de redes sociais, conseguiriam escrever bem melhor. Eu realmente espero que ninguém aqui nesta sala zere a redação do Enem. Pelo bem do futuro de vocês, e do meu também. Afinal, por mais que a gente se esforce para tentar passar um pouco de cultura pra vocês, a culpa é sempre da professora. Não é mesmo 3º E?

3° E? Que piada. Era exatamente ali onde eu estava. A maioria dos meus colegas de classe parecia não dar a mínima para o que a professora estava falando, assim como eu. No meu caso, eu andava em uma fase de um anestesiado tanto faz. Tinha colocado a maior parte da minha vida no modo automático. Eu não chorava mais. Nenhuma lágrima sequer. Elas haviam secado, assim como minha alma. Eu tinha me transformado em um zumbi. É engraçado pensar nisso agora porque era exatamente assim que Caio chamava o resto do mundo. Mas quem é Caio, afinal? Eu realmente não sei.

A minha sala era uma das cinco turmas de terceiro ano do Ensino Médio desta escola. Cada turma com uma média de 50 alunos. Cada aula com duração de 50 minutos. Não é preciso ser bom em matemática para perceber que o forte do nosso sistema de ensino nunca foi a conexão entre professores e alunos. Um minuto seria o tempo que cada professor teria para dedicar algum tipo de atenção a cada aluno. Se esse fosse o objetivo, é claro. Mas não era.

A primeira turma dentre as cinco, chamada Olímpica, era composta apenas pelos gênios. O 3º A recebia todo apoio e atenção da direção. Dela, sairiam as melhores colocações da escola nas principais universidades do país. Todos os anos, a escola espalhava pela cidade publicidade com os rostos dos campeões da vez: os primeiros lugares nos cursos mais cobiçados. Se o Ensino Médio fosse uma arena romana, eles certamente seriam nossos gladiadores.

Nunca Olhe no EspelhoOnde histórias criam vida. Descubra agora