only fools fall for you

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Eu me lembro do dia em que nós nos conhecemos. Foi, para todos os efeitos, estranho — e ouso ir além e dizer que foi também desconfortável. A saleta úmida do último andar da escola não era lá o lugar mais frequentado pelos alunos, e eu realmente não esperava ver alguém ali. Era o meu canto, afinal. O único lugar em que eu conseguia me sentir em paz comigo mesmo, sem nada nem ninguém para me atormentar.

Mas, naquela tarde tórrida de verão, em que tudo parecia derreter, eu encontrei você. Havia barganhado com a secretária de modo a conseguir a chave para aquele quartinho abandonado, portanto, não esperava companhia. E lá estava você, Dazai, o terceiranista esquisito, temido e simultaneamente admirado.

Você talvez tenha deletado essa memória — ou talvez tenha se utilizado de entorpecentes para deletá-la —, mas eu ainda me lembro como se fosse ontem. O sobretudo negro estava largado em uma das velhas carteiras, já coberto por uma fina camada de pó, que sempre fazia a minha rinite atacar. E você, sentado no meio do caos de material quebrado e inutilizado, lia um romance gigantesco, as mangas do uniforme arregaçadas, tão absorto em sua leitura que demorou uns bons cinco minutos para me perceber ali.

Um dos mistérios escolares era, sem sombra de dúvidas, o porquê de você quase nunca tirar o sobretudo. E, quando tirava, estava sempre de mangas compridas, mesmo no apogeu do verão. Dizia-se de tudo um pouco, apesar de o boato mais recorrente ser de que você era um membro da Yakuza e, por conta disso, precisava esconder suas tatuagens. Eu duvidava daquilo; você era extrovertido, falante, simpático e repleto de amigos, não tinha o menor cabimento ser um mafioso.

No entanto, naquele dia — era quinta-feira, caso você não se recorde —, a camisa clara não cobria os seus braços pálidos. E era possível, mesmo com uma certa distância, reconhecer aquelas estranhas marcas avermelhadas que subiam por todo o seu antebraço esquerdo. Ninguém nunca tinha pensado naquilo, até onde eu me lembro.

Exceto, talvez, Chuuya. Chuuya provavelmente sabia; ele provavelmente tinha, em algum momento, te segurado entre seus braços, te sussurrado declamações românticas por entre palavrões, te impedido de beber demais, de exagerar na dose dos remédios. Sabe, Dazai, eu gostaria de ter conversado direito com ele ao menos uma vez. De ter sentado de frente àquela figura baixinha e repleta de raiva, e depois de muito ponderar, porque aprendi a duras penas que ser impulsivo não me leva a nada, falar sobre você. Talvez Chuuya conseguisse me ajudar a te entender; eu sei que, como eu, ele também te amou.

Mas não é sobre Chuuya que eu quero falar, ao menos não agora. Quero falar sobre aquele dia na saleta do último andar, quero falar sobre como, por uns milissegundos, você ficou atordoado, sobre como os seus olhos, em um espaço minúsculo de tempo, deixaram transparecer uma angústia, um medo, um desespero. Quero falar sobre o modo afoito com que você procurou o marcador de páginas, e sobre como se ergueu quase em um salto, desenrolando as mangas da camisa. Sobre como sorriu, meio torto, e me perguntou se eu havia me enganado.

— O período letivo já acabou. — Você disse, o romance debaixo de um dos braços e os olhos grudados na minha figura frágil de primeiranista.

Hesitei. Não te devia explicações, Dazai, não as devia a ninguém. Com o meu dinheiro sujo havia pago a secretária, que me deixou usar a chave e a sala sem a permissão de superiores, e, portanto, era meu direito estar ali. Não que você tivesse dito que eu não podia estar lá, mas o seu olhar era intimidador, apesar das írises mortas. Fora que você era dois anos mais velho do que eu, e mesmo com toda a minha pose e má fama, nunca fui capaz de não abaixar a cabeça quando percebia um superior. E você era superior, Dazai. Você ainda é.

Então eu me vi, contra a minha vontade, explicando o porquê de estar ali, de um jeito completamente tosco e patético. Como se fosse uma daquelas colegiais dos animes românticos, os olhos baixos, grudados nos sapatos, um leve rubor me subindo pelo rosto — a vermelhidão sempre foi perceptível demais na minha tez doente. Achei que você me mandaria embora; era mais velho e, se você mandasse, eu com toda certeza obedeceria. Você sabe disso, Dazai, eu nunca neguei uma ordem sua. Para a minha surpresa e contentamento, a única coisa que você fez foi pegar o sobretudo e enfim partir sem sequer olhar para trás.

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