No sul do Brasil, o inverno por vezes tornava a geladeira um acessório dispensável: a própria temperatura ambiente se encarregava de manter os alimentos consumíveis por um bom período de tempo.Juliano contemplava a panela, a qual continha o almoço preparado durante o dia, sem muita esperança de que o mundo fosse mudar. Permanecer sozinho em casa numa sexta – feira à noite por opção própria, com o mundo pulsando lá fora, era bem diferente do que estava acontecendo agora. A pandemia causada pelo novo vírus já se arrastava por três longos meses, sem nenhum indício de enfraquecimento. Pelo contrário – mortes e casos se acumulavam, dia após dia, e os problemas cardíacos que possuía, mesmo jovem, absolutamente em nada ajudavam a fazê-lo sair de casa e se arriscar por aí, muito embora convite para furar a quarentena não faltasse.
Em homenagem aos seus amigos saudáveis e que estavam longe de ser solteiros como ele, pegou uma garrafa de vinho tinto e sentou em seu sofá na sala. Seu apartamento exalava frio e solidão. Exceto pelo seu gato, que dormia um sono profundo sobre a poltrona, não havia indício algum de vida pela residência. O irônico é que, por muitos anos, havia lutado por aquele momento: certa estabilidade financeira, independência e privacidade em um apartamento só seu. Agora que tinha tudo isso, questionava a si mesmo se uma companhia humana, qualquer que fosse, não seria de seu agrado.
Estava exânime dos noticiários e das palavras nojentas proferidas pelos políticos. Queria se alienar um pouco, já que o delivery de sushi estava mais atrasado que o de costume. Sorriu amargamente ao lembrar de seu melhor amigo, que era estagiário programador em uma dessas empresas de aplicativos para entrega de comida até alguns meses atrás. Sua namorada, depois de 5 longos anos de namoro, engravidou, deixando ele surpreso com a notícia. Com a quantidade de pedidos que esses aplicativos estavam recebendo agora, ele foi rapidamente efetivado e alçado ao cargo de gerente. Juliano bebeu mais uma taça de vinho, enquanto refletia. A seguir nesse ritmo, em breve seu amigo seria mais rico que o Silvio Santos e se tornaria um youtuber de finanças, mesmo com família inesperada e tudo o mais. Sem planejar absolutamente nada. Enquanto Juliano permaneceria ali. Na mesmice.
Tentou enviar a seu amigo uma mensagem pelo WhatsApp. Sabia, por conversas anteriores, que ele estaria de folga naquela sexta.
" - Fala Rafael! Beleza cara? " – digitou.
Depois de alguns minutos, tornou a olhar a mensagem. Ela jazia paradinha em sua conversa, sem qualquer indício de ter sido lida.
Entrar em seu Instagram e ver as fotos de sua ex-namorada era como regar uma flor morta: só conseguia lembrar dos momentos bons de um relacionamento que fora destruído pelo ciúme. Essa atitude não ajudava em nada no momento, apesar de terem decidido ser amigos após o término. A função "silenciar" da rede social era tão efetiva quanto a sua geladeira nos dias atuais. A curiosidade cochicha na alma do ser humano, e sempre acaba por levar a melhor. Seu funcionamento neurótico obsessivo, tão discutido na terapia com sua psicóloga, acabava por dar um jeito de vencer as barreiras tecnológicas, fazendo Juliano ver o mundo de mentiras cuidadosamente arquitetado pelas imagens publicadas na internet. Pensou em mandar uma mensagem para ela, mas não perguntando como estava – um meme cairia melhor. Ele enviou um de gato. Ambos gostavam muito dos ronronantes, e nos tempos áureos da relação haviam decidido viver juntos em um apartamento relativamente simples. Uma vida tranquila, com um gatinho. Pois hoje em dia, ele tinha duas peças de sua vida perfeita. Mas faltava a última... e isso lhe entristecia.
Alguns minutos depois, que mais pareceram horas, não havia resposta em nenhuma das mensagens. Nem seu melhor amigo nem sua ex-namorada estavam online. Havia algumas poucas pessoas ativas, com as quais Juliano não falava há no mínimo 10 anos. Jamais soube o real motivo de mantê-las conectadas em seu perfil. Puxar papo com elas era assinar seu atestado de loucura perene.
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Junho de 2020
Short StoryEm mais um dia frio de pandemia, Juliano acaba ouvindo a campainha de seu apartamento inúmeras vezes. Retratando o isolamento inerente aos dias complicados em que vivemos, o conto ilustra sentimentos como solidão, ironia, tristeza e felicidade em m...