EU O VIA ALI TODOS OS DIAS

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Eu o via ali todos os dias.
A bola quicava e suas mãozinhas pequenas a embalavam pelo concreto, passo após passo onde seus pés num tênis surrado andavam pela entrada da garagem e os olhos escuros e brilhantes não perdiam um só movimento. Eu sabia que seu nome era Hector, sabia que morava ali na casa ao lado e sabia que era um dos melhores amigos do meu filho Igor que estava há uns dias doente e não podia brincar agora com o colega, que parecia tão solitário ali, tendo como companhia apenas uma bola velha.

Eu o via ali todos os dias enquanto Igor se recuperava. Eu me acalmava vendo Hector através da minha janela, que esperava meu filho dia após dia ali para mais uma partida. E em um desses dias comuns de basquete e cestas, erros e acertos sem ninguém para comemorar ou ralhar eu o vi tendo uma atitude inesperada. Com os mesmos olhos escuros e brilhantes que capturavam cada segundo de movimento, ele avistou algo ao longe, em um lugar onde ali da minha janela eu não consegui ver. Olhei para a mesma direção, mas não vi nada que o fizesse tomar tal atitude. Ainda como quem não queria nada ele se afastou e o vi agarrar a bola com os braços finos e se esgueirar para trás do meu carro que ficava na garagem ao lado da dele. Ele não me viu ali atrás das cortinas, mas eu o vi levemente encolhido, os olhos agora um pouco amedrontados, encostado no veículo e imaginei o que causaria tanto pavor em uma criança numa tarde tão ensolarada e calma.

Pois é, eu o via ali todos os dias, mas nunca imaginei que o mais causaria pânico naquele garoto seria uma viatura de polícia.
Eu o via chegar da escola, outrora com Igor, agora sozinho, e logo sair para jogar basquete no quintal, e nunca vi nenhum motivo para aquela atitude sorrateira. Nesse momento eu fiquei tenso. O que será que nosso pequeno amigo tinha feito para temer tanto quem nos protege? No momento em que a viatura seguiu caminho e se afastou eu o vi sair de trás do carro e voltar a embalar a bola, mas meu subconsciente já estava arredio então fechei a cortina e me sentei no sofá.

Passaram-se alguns dias que eu não quis mais ver o garoto através das cortinas. Eu estava com medo, confesso, e a cena dele encolhido e escondido não saia da minha cabeça. Ele era só uma criança, não tinha mais de doze anos, mas essa também era a idade do meu filho que agora estava já bem e pedia incessantemente para brincar com o amigo.
Pensei. Pensei várias vezes sem saber o que seria o certo. Eu não conseguia imaginar Hector sendo má companhia, não conseguia imaginar qualquer membro da família Souza que vivia ali há anos ser de má índole, mas ainda sim eu me assustava em pensar que aquele garotinho que eu tinha visto praticamente nascer fosse alguém que precisasse se esquivar da lei já tão jovem. Na minha cabeça nenhum motivo aparente surgia para eu conseguir encobrir a atitude do garoto, nada, zero, então só o que eu pude fazer foi respirar fundo e tentar esquecer o que aconteceu.

Eu os via ali todos os dias depois disso, Hector e Igor chegavam da escola, corriam cada um pra sua casa e largavam as mochilas no sofá. Voltavam para fora, Hector com a bola, Igor com o sorriso que rasgava o rosto e brincavam tarde a fora como se não houvesse amanhã. Todos os dias, e em nenhum outro dia eu vi nada suspeito de Hector, nada suspeito de ninguém da família. Mesmo me obrigando a esquecer, eu não pude evitar, e algumas semanas depois, em um  anoitecer quando Igor se despedia do amigo e entrava todo suado em casa, eu o levei para o banho e preparei a mesa como qualquer outro dia e me preparei para a conversa que eu mastigava a algum tempo.

Eu o vi ali por vários dias, mas nunca pude imaginar o motivo real que fez Hector se esquivar de uma viatura. Igor me contou com a maior calma do mundo, com a maior naturalidade do mundo, algo que eu jamais em minha vida poderia ter considerado natural.

A mãe de Hector, Dona Eva, andava assustada porque um de seus irmãos havia sido agredido no mês anterior porque tinha perdido o ônibus e correu para o trabalho a pé pelas ruas do centro. Foi parado no meio do caminho e confundido com um assaltante fugindo de um crime. O motivo? Dona Eva disse para Hector que o único motivo tinha sido a pele. Não tinha havido nenhum furto próximo, nenhuma denuncia, ele foi parado simplesmente por ser um negro correndo. Igor me disse que ela pediu para Hector nunca correr, independente do motivo, e evitar sempre ter atitude suspeitas, mesmo que essa atitude fosse simplesmente tentar não se atrasar. Hector entendeu e contou para Igor que, depois disso, sempre que vê policiais ele prefere não ficar a vista.

Eu ainda estava aturdido quando pisquei e focalizei os olhos no meu filho que falava disso sem nenhuma entonação na voz. Meu filho branco, louro, que nunca precisaria passar por nada parecido, parecia entender a situação do amigo mais do que eu mesmo sequer entenderia um dia. Mas o que mais me assustava é que ele falava como se isso fosse normal. Poderia isso ser normal? Então resolvi perguntar sobre o que mais me incomodou em tudo o que ele falou.

- Mas, filho, porque ele se esconde mesmo se não está fazendo nada?

Igor deu de ombros. - Ele disse que, como não sabe o que a polícia considera suspeito ele prefere então não arriscar porque tia Eva não aguentaria outro parente morto.

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⏰ Última atualização: Jul 03, 2020 ⏰

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