A moto acelerava explosivamente pelas ruas tumultuadas. Jô cortava o trânsito lento sem hesitação, se espremendo por entre as menores aberturas para continuar avançando. A fumaça espiralava para fora dos escapamentos dos pesados veículos e lhe obstruía a visão, mas Jô continuava acelerando e indo em frente por puro instinto.
— Juca, relatório! — Ela gritou para o microfone embutido no capacete.
— O alvo está estacionado no fim da Getúlio. É agora ou nunca, Jô. — A resposta saiu equalizada pelos fones.
Jô acelerou ainda mais, fazendo o motor da motocicleta rugir em protesto enquanto ela cortava por entre dois caminhões; os faróis em neon da motocicleta se misturaram com a confusão cinzenta que era a rua, deixando um rastro fúcsia para trás. Jô passou pelos caminhões e se inclinou para o lado, o ombro quase raspando no chão conforme ela atravessava na frente de cada uma das quatro faixas de motoristas endurecidos e tomava um desvio por uma rua transversal.
— Os faixas pretas chegaram, Jô! Tão fechando a rua!
— Merda!
— O viaduto, Jô.
— Eu sei. Eu sei.
Girando na rua transversal, o pneu da moto cantou enquanto ela dava meia-volta e retornava para a principal, ouvindo mais uma explosão de buzinas e palavrões que ela prontamente devolveu sem hesitação.
A moto voltou para a bagunça da rua principal, uma mancha rosa costurando em um mar de cinza. Jô pisou fundo, indo muito além do que qualquer um com bom senso diria ser recomendável. A moto rosa se enfiou na última faixa de novo, agora lutando por espaço com os carros para subir no viaduto. Jô nem sentiu quando começou a subir a elevação. A rua embaixo dela estava completamente bloqueada pelos faixas pretas: vans completamente negras separavam o trânsito de ambos do alvo de Jô.
Carros virados e chamas mostravam que o alvo tivera alguma diversão antes de Jô chegar. Os faixas começavam a descer das vans; dois homens vestindo um uniforme reforçado preto com um capacete fechado saíram de cada veículo, a elite do centro de zoonoses.
Numa fração de segundos, Jô viu o esquadrão de oito homens armados com rifles de assalto marchar para o alvo dela: um cachorro vira-latas de pelos fúcsia, a mesma cor da moto com que Jô acabara do viaduto aterrissando entre o cão e os faixas.
Com um aperto de botão no guidão, a moto liberou uma lata, que foi impulsionada para cima por uma fumaça brilhante. A lata explodiu e as letras SR brilharam no céu, a sigla dos Salvadores da Rua.
Jô empinou a moto para afastar os faixas e começou a rodear o cachorro.
— O corpo dele tá super aquecendo, Jô. Ele vai latir.
A boca do vira-latas se abriu em quatro como uma flor desabrochando. Jô voltou duas rodas e se balançou para recuperar o equilíbrio enquanto saía do alcance do cachorro no último segundo. Uma onda de choque violentíssima estourou da boca do cão, se expandindo em forma cone na direção dos faixas.
Os soldados do zoonoses cravaram os pesados cravos das botas negras no asfalto, retardando o empurrão do latido. Os carros tremeram e a rua vibrou com o impacto. Jô perdeu o controle da moto por uns segundos e quase caiu de cara no chão, recuperando o domínio no último minuto.
— Esse latido foi escala três. — Juca informou pelo rádio.
— Daqui pareceu um sete.
— Ele vai precisar de uns segundos pra soltar outro desses! Vai! Vai!
Mais uma meia-volta brusca e Jô avançou em direção ao cão fritando o asfalto. Uma bomba de fumaça estourou ao seu lado, disparada pelos faixas. Ela cruzou a pista até a lateral oposta e finalmente capturou o vira-latas, segundos antes de dois Faixas colocarem as mãos nele.
Jô avançou com a moto, derrubando os dois, o cão apoiado no colo.
— Hey, Moleque. Você não pode…
Mas Jô já o tinha deixado comendo poeira. Ela avançou contra o bloqueio dos faixas sem um pingo de hesitação, acelerando com tanta força que nenhum dos malditos ficou em seu caminho enquanto ela seguia em rota de colisão com uma das vans. Jô ergueu a roda dianteira no último minuto e a moto subiu pela lateral do veículo em noventa graus, o vulto fúcsia brilhante disparando por cima do bloqueio e aterrissando com um tranco entre os carros amontoados no engarrafamento do bloqueio.
— Jô, ele vai latir! A focinheira! A focinheira!
Com um movimento hábil das mãos, Jô soltou o guidão, controlando a moto apenas com a cintura enquanto saía da Getúlio por uma via lateral. Tirando uma argola que vinha presa no velocímetro, ela encaixou na boca do cachorro no exato momento em que ela começava a se abrir. O cão lutou contra o objeto, quase desequilibrando Jô, mas a focinheira começou a brilhar e o cão caiu num sono induzido.
— Totalmente neutralizado.
— Traga ele pra cá. A ONG já achou um lugar pra ele.
— Foi rápido.
— Ahh… não.
— Que foi?
— Tem uma vã da zoonoses fazendo o percurso até você. Eles não vão desistir desse aí.
— Bem… — Jô acelerou e empinou a moto. — Eles podem vir!
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Cores de Cruz Branca
Science FictionCores de Cruz Branca é uma coletânea de micro contos sobre Cruz Branca, uma cidade tipicamente brasileira em pleno ano de 2070. O trânsito não funciona, as pessoas não se respeitam e o prefeito não é lá essas coisas; nada muito diferente do normal. ...