|Capítulo Único|

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O tic-tac do relógio na mesinha em um canto da sala era um plano de fundo que demarcava sem cessar o compasso da música de Nara Leão ressoando do rádio ao seu lado.

A música tocando era uma das favoritas de Cecília, Vento de Maio, ao seu ver uma das poucas belezas que viu em seus treze anos. O ar tinha um tom alaranjado, fazendo seus cabelos pretos brilharem contra o marrom do sofá, no qual ela estava deitada, a expressão algo entre tédio e tristeza simultânea. Seus olhos heterocromáticos encaravam o teto desgastado. O calor da tarde fazia sua pele pinicar.

Aquela era a casa de uma velha tia sua. Sua mãe havia lhe despachado para lá após juntar-se à alguma espécie de movimento contra algum tipo de coisa. Cecília pessoalmente não se interessava muito por coisas daquele tipo. Até mesmo por não entender do que se tratava. Ela só sabia que sua mãe havia lhe jogado para junto de uma parente estranha de seu pai andarilho, que nunca terminava sua longa jornada solitária de conhecer o mundo.

Seu pai era uma pessoa incrível, na visão de Cecília, pelas histórias que ouvia de sua mãe. Entretanto, em nada melhorava seu humor de ter que viver naquele casarão enorme em São Luís, onde não conhecia ninguém nem aquela tia com quem iria conviver.

Ali era muito silencioso, até que sua tia apareceu com o seu costumeiro sorriso gentil, apelando de maneira insistente para que Cecília se animasse e fosse encontrar algo para se distrair. Ela sugeriu para a menina explorar o lugar.

— Esses casarões escondem muitos segredos, acredite. Alguns você nem espera.

Cecília, com seu jeito dócil de ser, se deixou levar.

Ela vagou pelos cômodos espaçosos, passando pelo primeiro andar e logo após o segundo. Em alguns corredores havia quartos comuns de uma casa urbana, com peças de crochê e bordado cobrindo diversas mesinhas. Outros cômodos menores estavam vazios ou cheios de caixas e móveis velhos cobertos por panos e poeira.

Nenhuma porta estava trancada, o que não trazia nenhum sentimento de exploração verdadeira. Isso até ela se deparar com uma porta, no final de um corredor um tanto escondido. Cecília quase havia deixado passar.

A porta não abriu quando girou a maçaneta desgastada. Ao questionar a tia, a mesma afirmou não se lembrar da existência de tal porta, e replicou que talvez a chave estivesse na pequena caixa de sapatos na cozinha junto com outras chaves.

— É uma casa velha, de tempos em tempos trocam as fechaduras. Algumas chaves se perdem.

Cecília tomou a caixinha e se prostrou diante da porta, testando uma chave de cada vez. Em algum momento sua tia gritou de outro cômodo que estaria saindo e voltaria logo. Cecília respondeu que tudo bem, não prestando muita atenção a ela. Já era fim de tarde e estava meio escuro já quando ela enfim encontrou uma chave que servia ali.

Devagar, ela girou a maçaneta. Devagar, ela entrou. Um traço de decepção cruzou seu semblante ao olhar ao redor. Tudo que ali havia era nada, exceto poeira e um grande guarda-roupa na parede oposta à porta, onde ela estava.

Ainda que chateada, a curiosidade e a esperança de encontrar algo interessante a fez andar até o guarda-roupa e inspecioná-lo. Era verdadeiramente muito velho, mas ainda assim muito bonito. A madeira era escura, e descascava nas beiradas. Os finos puxadores nas portas duplas, outrora talvez dourados, estavam tão enferrujados que tornaram-se cobre e sujava os dedos quando tocados. A poeira irritava os olhos de Cecília, mas ela ainda se demorava para abrir o guarda-roupa.

Quando tentou fazê-lo, ouviu as dobradiças ranger e sentiu que estavam tão enferrujadas quanto os puxadores de metal, tendo um pouco de dificuldade em abrir as portas. Por um momento, pensou em desistir. Lágrimas já enchiam seus olhos por conta da sujeira daquele cômodo. Logo se via que ninguém entrava ali há tempos.

O Outro Mundo - Nayana FerreiraOnde histórias criam vida. Descubra agora