Indo de metrô para faculdade. Horário de pico pela manhã e alguns pães de queijo que havia comprado fora da estação. São Paulo é um inferno, mas não do qual eu estou habituado. A vantagem do metrô é que não há pastores evangelizando e tentando te converter em uma seita. Acredito que seita seja a fé contrária da minha, apesar de que não tenho fé. O vagão é abafado porque os ares condicionados não suprem a demanda de lotação. Costumo pensar que as pessoas vivem o prazer da submissão. Existe um fetiche de amarrar, espancar, cuspir e mijar em alguém. As pessoas têm tesão nisso. Não todas, até porque algumas ainda se incomodam com o calor que faz aqui dentro. Preciso chegar a tempo de fazer a prova, porém sem condições de me apressar mais do que já corro. Outra vez, quase quebrei meu pé na escada rolante porque desviei de uma moça no celular que não deixou a esquerda livre. "Próxima estação: Sacomã. Next station: Sacomã".
O clima parece sempre mais frio por aqui. O fato de que odeio frio não diz muita coisa sobre quem sou. Milhares de pessoas odeiam frio e isso não é nada demais. Não é um desvio de personalidade ou transtorno de algo do tipo. Vejo de longe meu amigo vindo, já acenando para mim.
— Alex!
— Fala, criatura abominável — respondi abraçando e segurando a porta do elevador da faculdade. — Sexto andar?
— Sétimo. Vou estudar para prova — respondeu Kailo.
Estranho, pois Kailo odeia ficar sozinho. Ele tem uma dependência emocional muito grande nos amigos. Quase sempre faz chamada de vídeo em horários aleatórios e sem muito assunto, apenas para não se sentir sozinho. Seus pais se divorciaram há alguns meses. Desde então, ele tem morado nos dormitórios da faculdade e quando precisa esvaziar, vai para meu apartamento, pois não tem onde ficar. Outro dia apareceu com um tal de Gabriel. Esse Gabriel poderia ser qualquer Gabriel, mas vamos chamar de Gabriel Número Dois: aquele que não te deu um pé na bunda. Kailo coleciona paixões e romances não terminados, porque sempre foge de algo que pode se tornar sério. Uma coisa que nunca consegui entender é como alguém tão dependente emocionalmente do alheio não consegue firmar e emplacar um relacionamento de verdade. Isso me deixa preocupado quanto sua concentração, pois se está apaixonado, fica no mundo das nuvens como o começo de todo romance. Mas estes romances mudam mensalmente, o que faz Kailo ficar no mundo das nuvens praticamente o tempo todo.
— Subindo, senhor — completei — estude bem, vou ficar aqui embaixo.
E por lá eu fico. Preciso me alimentar, porque nem só de pão de queijo vive o meio-homem. Então fui até a cantina e pedi um misto quente de queijo e café com leite. Sentei-me por ali e por ali mesmo comi. Antes que pudesse sair, professora Miracoli surge para me perguntar de uma pesquisa que eu estava lhe devendo.
—Podemos marcar um horário na minha sala, Alex? Acho que seria interessante discutirmos sobre em que pé está nossa pesquisa sobre Sociedade do Controle — me pergunta ali em pé mesmo, como se estivesse com pressa.
— Deleuze provavelmente odiaria esse controle de ter prazos para entregar os trabalhos — respondi, em tom de piada. Era estranho como eu podia fazer piadas com minha professora da graduação como se fosse bons amigos. No ensino médio, provavelmente eu levaria um esporro dos bons e seria encaminhado por indisciplina — mas podemos combinar. Acho que estou quase no fim. Preciso da sua aprovação.
— Vamos nos ver semana que vem então. Preciso mandar para análise. E pode ter certeza de que Deleuze odiaria um enrolão que nem você — respondeu.
Então vai embora, como se realmente estivesse com pressa. Eu também deveria, já que a aula começou às oito e agora já passa um pouco das nove. Talvez, a aula já tenha até terminado e eu nem precise ir mais para a sala. Ou talvez a aula nem seja na sala, mas no auditório e eu não fiquei sabendo. Não faço parte de nenhum grupo dessa universidade. Não estou engajado com nada, se não com bandejão que serve o melhor falafel que já comi.
Dou meia volta e decido que é melhor ir para biblioteca. Chegando lá, vou para os fundos, pois não estou ali para estudar. Preciso me concentrar em uma outra coisa. Pego meu celular e digito na própria tela de discagem o código. 10M99A99M*#66*2020#*10. Coloco para chamar.
— Achei que estivesse morto.
— Esse é meu dilema — respondi quase cochichando.
— Precisa de cobertura? Está falando muito baixo, mal posso te ouvir.
— Por favor.
Então o mundo em minha volta fica preto e branco em tons escuros e não posso ouvir mais nada. Naquele momento, não sei bem o que aconteceu. Se isso é magia ou sei lá o quê. Tenho demais o que aprender, mas antes preciso terminar minha graduação aqui. O mundo, além de preto e branco se torna silencioso. É como se as pessoas estivessem cochichando segredos umas para as outras. Por eu estar na biblioteca, isso se torna mais atenuado ainda.
— Vamos ao que interessa, pequeno A. Do que você precisa? — pergunta Luci.
— Estou com um problema com uma pessoa. Estou me apaixonando. E sei que não deveria, mas...
— Você enlouqueceu? — interrompe Luci — eu já deixei que você terminasse essa maldita graduação inútil na Terra antes de ficar definitivo comigo por aqui e você ainda me dá uma dessa?
— Como se eu tivesse escolhido ter a vida que tenho — falo dando um sorriso malicioso e já de pé, andando de um lado para o outro.
— Você vai estragar tudo! Você vai estragar tudo! Vai colocar tudo a perder.
— Eu vim com sinceridade te pedir por ajuda e você me trata dessa forma — indaguei — como se o mundo girasse ao seu redor. Mas você não é o protagonista aqui.
— Nem se atreva, mortal.
As vezes esqueço de que ainda sou mortal. Terei uma longa —literalmente — vida —não literalmente — pela frente. Mas, preciso me ajeitar aqui antes de ir para lá.
— Preciso ir.
— Então vá — responde Luci com sangue nos olhos — e dê um jeito nos seus próprios problemas. Nem pensei que trará um humano por vias incomuns para cá. E nem que terá contato com os Passados.
— Pode deixar, mãe.
— Te amo, filho.
E o mundo volta a cor. Por enquanto.
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Todos os garotos bons vão para o inferno
FantasiaAlex é um garoto normal, mas apenas enquanto está na Terra. Periodicamente, precisa descer ao Inferno onde é seu lugar. Mas não que tenha cometido algum pecado, o fato é que ele é filho de Luci, a Diabo (sim, a Diabo é a mãe de Alex). Foi acordado q...