Carne, pele, vísceras, cabelo... Catarine se perguntava como morrer pode te transformar numa coisa que gosta de comer isso. “Já deu”, ela pensou, depois de assistir por minutos um morto-vivo devorar um cadáver, se sujando dos fluidos como uma criança se suja do chantili de um bolo. Ela girou a cabeça e o cabelo dourado foi para trás. Apontou o estilingue e esticou o poderoso elástico. Esse não era um estilingue comum, e Catarine não era uma atiradora comum também. Ela era apaixonada por essa arma e desde a infância era a mais temida campeã das competições de estilingue e arco e flecha. Ainda mais, sua arma era feita de policarbonato e possuía um laser, que melhorava a precisão em sua caça. A munição era uma bolinha de metal. Por esse motivo, a atiradora sabia qual seria o resultado.
Ela soltou o elástico, permitindo que a bolinha avançasse em direção do olho direito do zumbi. Sem nem saber o que o havia pego, o morto-vivo caiu no chão com um olho destruído e foi devolvido à morte, onde era seu lugar.
— Uau! Você disse mesmo que conseguia matar zumbis com isso. — Vitto sorriu elogiando. A dupla correu até lá e enquanto o rapaz vigiava, Catarine se agachou para examinar o zumbi. Na ressequida mão esquerda, uma aliança de ouro ainda brilhava com os raios de sol. Catarine retirou a joia e a mostrou ao parceiro.
— Essa, sim, é ouro puro. — ela girava sorridente o anel no alto.
— Tem mais? — ele perguntou depois de passar o olho rapidamente.
— Tem... Ugh... — Catarine checou os bolsos e sentiu — Carteira, celular.
— Massa! — ele estendeu a mochila aberta, onde já brincos, anéis de prata, bronze e ouro, relógios, moedas e outros objetos de metais preciosos estavam. Catarine jogou o que achara de valor no zumbi ali dentro e ele fechou o zíper. Vitto olhou para o céu azul acima deles. O sol estava quase no centro, mas virado um pouco à sua esquerda.
— Onze e quarenta. — ele informou — Por isso estou com fome. Bora voltar.
Catarine concordou, deixando o cadáver em paz, finalmente. Atravessando a campina, logo estariam em casa.
A mochila do Vitto fazia um barulho enorme de metais raspando uns nos outros. Isso seria fatal, se precisassem ser furtivos. Por isso Catarine via como uma missão bem arriscada a coleta de riquezas. Arriscada e honrosa, pois era o que os faria mudar de vida quando tudo isso acabasse. Enquanto os outros humanos no país procuravam apenas sobreviver até o fim do dia, Catarine e seus cinco companheiros pensavam no futuro e em como estariam quando chegasse.
Era lógico: Se tudo começou no Brasil e apenas este país foi dominado pelos zumbis, uma hora os exércitos dos países parceiros chegarão e o tal “apocalipse” não passará de um capítulo nos livros de história. Daqui pra lá, se Catarine e seu grupo quisessem ser os mais ricos do país renascido, tinham que se esforçar cada dia mais.
Vitto lhe deu a mochila e foi encontrar a namorada Antônia, que ajudava Marla e Danilo na colheita e na pesca do lago em frente à casa que viviam. Catarine entrou numa sala cheia de sacos, caixas e pacotes que continham todos os metais preciosos que encontraram. Guilherme, o nerd da equipe, pesava um saco de itens de prata e digitava em uma calculadora na mesa cheia de livros onde passava o dia.
— E aí, Gui. — Catarine abriu a mochila — dá uma olhada.
Guilherme examinou sorridente.
— Caraca! Deve ter uns seis mil reais aí dentro, Cat!
— Nem a pau! — refutou Catarine — A gente achou um pingente de ouro e quartzo negro num quarto do Resort Vila Galé. Só aquilo deve valer muito mais! Tá aí, junto.
— Sério? — Guilherme perguntou empolgado. Catarine gargalhou.
— Eu te falei que hoje o dia ia ser bom. Toma — ela lhe deu a mochila — Se diverte.
Catarine deixou a sala olhando para as caixas e sacos que cobriam toda a parede do fundo e estantes de metal. Aquilo era fruto de uma dedicação fora de série.
Mais tarde, no jantar que reuniu toda a equipe frente a um banquete que muitos não conseguem ter mais, Guilherme se levantou erguendo sua lata de cerveja.
— Um brinde — ele começou, e todos ergueram suas diferentes bebidas também — à quantia de dois milhões que ultrapassamos hoje.
Em meio a tempos de gritos de dor, Catarine e seu grupo gritavam de alegria, despreocupados, pois os mortos-vivos grunhiam a quilômetros de distância de seu seguro lar. “Dois milhões”, Cat pensou, “ainda é pouco”, concluiu em sua mente, após dividir o valor entre os seis. Estava feliz, mas julgou que não era motivo para comemoração, ainda.
— E um brinde — Antônia lembrou — aos nossos familiares e amigos que se foram.
Todos concordaram com pesar e ergueram suas bebidas dizendo em uníssono um sonoro “tim, tim”. Após o jantar, seus amigos foram dormir. O dia havia sido cheio, mas Catarine decidiu caminhar um pouco mais. Pegou sua mochila com três flechas, uma machadinha e o arco. Na escura noite, só sua lanterna trazia a visão da mata e das campinas. Enquanto vigiava o derredor, ela pensava em formas de conseguir mais tesouros. Absolutamente todas as lojas de joias e itens de elevado valor da região já haviam sido saqueados. Talvez fosse a hora de fazer caças ao tesouro mais ousadas, uma busca que cubra lugares mais distantes. Foi pensando sobre isso que Catarine não viu o zumbi que se aproximava. Os braços secos a perseguiram, mas ela esquivou-se. Quando ele se virou, Catarine já estava preparada, com a machadinha em mãos. Sorriu ao ver que o cadáver usava um colar dourado, mas antes que agisse ele caiu. Ao lado, um rapaz desconhecido apareceu. Catarine se afastou. Ele olhou para ela erguendo a sobrancelha e a mediu com interesse sombrio. Em redor, outros surgiram com facões e lanças improvisadas. Dez, pelo menos. Estava difícil enxergar. Catarine pegou o arco e uma flecha da mochila e apontou para o que estava à frente.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Cadernos Ensanguentados 5: Os Mortos Não São Vaidosos
Short StoryQuando surgem boatos sobre a infecção ter assolado apenas o território brasileiro, Catarine e seu grupo decidem reunir as riquezas de mortos-vivos com a esperança de que tudo acabe e eles possam retornar à sociedade como milionários, mas um grupo co...