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O vento passa dentro da pele. Você tem sido forte, eu sei. Eu te admiro demais, demais... Terça-feira calma, numa cidade toda agitações, é de noite e você sai da estação, indo pro ponto. De repente olha para trás, lá onde a gente ficava e o tempo voava. O tempo passa devagar pra mim também, devagar demais, demais... Eu saía da faculdade, você vinha do trabalho, nos encontrávamos aqui na Borba Gato, passando o tempo, comendo pipoca, aquela doce e vermelhinha, e depois íamos pra sua casa. Certamente você sentia meu espírito te acompanhar, te pungindo, como o vento que te curtia e te curte, e te parte no meio. Mas você é forte, eu tenho certeza que esse caminho, dentro do caminho maior que é a vida: a travessia, esse caminho vai ser velado por algo mais que um quase-eu, aquele eu que você inventou, a escultura de ar à minha imagem e semelhança, que você tem contigo, e te ama, e é apenas uma ideia. Ele vai ser velado pelas coisas do futuro, e não serei algo mais que uma lembrança doce algum dia.

Tudo porque você é forte demais. Eu chego a ter medo de perguntar por você e enganar a sua força, por que ter te visto fragilizar-se foi a prova maior da minha impotência. Você é meu gigante, água do mar que beija meus pés. Nunca quis te ver cair, e quando fui sua maior fraqueza foi quando me vi aquele quem ia te levantar, eu quis dar um sorriso e dizer que vai estar tudo bem um dia, e desabamos de chorar e muito porque na verdade o que foi e sempre será é que eu nunca vou poder dar o que você sempre quis. Não posso sequer ensaiar um sorriso cheio de vigésimas intenções. Você, seus lábios tão grossos e os olhos de um castanho ardente, quase amarelos. Nas suas mãos as veias ficam destacadas. O seu cabelo lembra uma nuvem: é aquilo que passa, que vai embora com o vento quente, no fim de uma tarde sonolenta, você é aquele amigo que passou uma semana na sua casa, e vai embora nesse arrebol da tarde, num domingo quieto, e precisamos conferir a hora do ônibus, que sai de duas em duas horas, porque vocês dois estão cansados, mas se ele ficasse também seria tudo bem, por mais uma semana, ou duas, por tempo indefinido, em nome de todo o amor dessa terra.

Talvez o seu destino seja a felicidade. Eu até consigo enxergar, vaticinar: olha: você volta à noite, e o meu espírito te acompanha, água do beira mar, e você volta pra casa, e chega a falar meu nome, baixinho, sem articular direito metade das letras, mas um dia isso vai deixando de acontecer, e vai te largando, até que num momento do tempo vasto alguém como eu, de carne e osso, aparece na sua frente e faz pouca, senão nenhuma promessa, mas te magnetiza, te prende. Você de repente tem o trabalho dos sonhos, e as promessas que nunca foram feitas se realizaram, porque veladas no coração. Felicidade, cuidado, saudade, prudência. Tudo jorra do seu coração, numa efusão de vida-comum, de cotidianos, de beijos e planilhas. Um dia o destino vai me por de frente a você, e talvez nem troquemos palavra que fosse, você vai engolir o sobressalto, e ele vai criar raízes. O dia seguinte a esse encontro vai ser de um silêncio de morte, você pensa como seria se fosse tudo diferente, que destino eu encerrei ou pari. Com o tempo o sobressalto vai rarear, vão passar muitas festas, e outros tantos carnavais. Meu amor, vou amar tanto saber que você está feliz, vou te amar ainda mais do que antes! Algo em você vai se transformar, e talvez você nem perceba, mas você sente que nada na vida foi um ponto sem nó, desde aquele verme que você achou brincando no jardim da sua vó até o fato de você me ter amado infinitamente e eu não corresponder, de você ter me contado essa história do verme e agora ela está viva e viva demais, dentro de si. Tudo começa em mim, para não ter fim. No princípio criou Deus os céus e a terra. E a terra era vã e vazia, e havia escuridão sobre a face do abismo, e o espírito de Deus se movia sobre a face das águas.

E disse Deus: "Seja luz!". E foi luz.

VENTO NO CORAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora