Parte 1

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Na solidão, depois da morte dos meus amados, dou múltiplas tragadas no meu charuto e bebo o meu uísque no gargalo da garrafa, estando na minha varanda, balançando como em filmes de terror na minha cadeira de madeira. É quase madrugada e o céu exibe uma escuridão acompanhada de raios que rasgam as nuvens, porém sem nenhum som e algumas escassas gotas ousam pousar na terra.

Está frio e com o meu grande casaco negro que mais parece um terno, não me torno vítima da tortura da natureza.

Não sou nada velho, nem sou nada jovem e nem criança, sou apenas um monstro em carne de um humano, com desejos satânicos e o mais ruim da face da terra que você nem pode imaginar. A minha pele é uma mistura de negro e branco. O meu cabelo é uma mistura de crespo e liso e os meus olhos são vazios e tenebrosos.

Respiro fundo, respiro fundo lembrando das atrocidades das minhas mãos e minha mórbida mente. Sorrio só, sinto e vejo o futuro me agredindo, me rasgando e me levando para o meu lugar que me merece, o abismo? O inferno? Bem, qualquer lugar, mas que seja insuportável consoante os meus cruentos atos.

Eu sei, é pesado o que da minha boca sai e você pode sentir isso. Tem mais, sim tem mais, eu não me arrependo, pois estaria a mentir para o meu âmago.

Eu amo a escuridão, pois ela me conforta e sempre esteve comigo para as minhas atuações perfeitas e pretensiosas. Sempre fui assim, cheio de pretensão que foi se conjugando em algo como perfeccionismo, egoísmo e outros termos que levaria séculos citando aqui.

Continuo balançando na cadeira e posso sentir o cheiro de algo se aproximando com boas intenções, porém sinto uma desconfiança crescendo em mim, uma desconfiança crescendo em cada parte do meu imo, talvez seja por conta da minha mania de desconfiar de todos os humanos. Esse é o meu, na verdade, meu e seu problema de chamar os outros de humanos como se nós não fôssemos um deles. Espera, não é um humano que se aproxima, mas sim uma ave que não parece uma que estamos acostumados a ver voando nas noites. Solto a fumaça que rebola no ar formando figuras destorcidas como a minha alma que se orgulha de cada gota de sangue derramada, espera, eu disse alma? Bem nem isso tenho mais. Sou apenas um animal escravo do mundo material.

A velocidade do meu visitante é absurda e por vezes perco o seu odor. Olho para o céu e um raio me surpreende marcando um 3 bem rápido que desaparece quando pestanejo uma vez.

As lembranças que tenho são de arrepiar, eu não quero que você pare de ouvir, mas quero apenas avisar que as minhas palavras não serão meças, pois detalharei tudo da forma mais cruenta que você imagina, ou melhor, que você não faz nem a mínima ideia que fosse imaginável e factível.

Bem, houve o meu tempo de ter tudo e tive, e houve o meu tempo de perder tudo e perdi, e agora aguardo por algo que já vi no futuro, e a desvantagem de ver o futuro é o problema de ser atormentado por um espírito chamado, ansiedade.

Eu já aguardava por este tempo há muito, e finalmente tenho que deixar o delicioso mundo, o mundo material no qual sentirei saudades dos meus piores e infernais pecados.

Vou deixar tudo claro aqui, pois você pode estar achando que a inspiração para a minha truculência me veio do famoso "Diabo", no entanto, eu tenho o prazer de lhe desapontar dizendo que escolhi fazer aquilo e o que faço até hoje, o " Diabo" não tem nada a ver com tudo o que fiz e o que faço.

Alguém me permitiu fazer as minhas escolhas, pois a liberdade foi me entregue, então fiz isso e espero o resultado do meu árduo progresso e conquistas.

Sorrio quando me preparo para sentir a intensidade das memórias macabras, a adrenalina começa com o seu processo e isso me excita com toda pujança.

Um vento frio e de nada banha a minha face quando direciono a minha garrafa à boca para me aquecer e emanar o que me parece fragrância.

Bem, não estou só a espera da minha sanguinolenta morte, mas sim com muitos outros que fizeram a mesma escolha que eu, outros foram os primeiros e pude ouvir de poucos os hediondos relatos de ouriçar os pêlos.

O primeiro foi visitado pela mesma ave que está vindo para a minha vez, a ave do líquido sagrado por aquele que nos céus está. O líquido viscoso e precioso. A primeira vítima teve que derramar o mesmo líquido numa tortura onde ela morreu, com honra por ter lutado com robustez, assim também o farei, pois parado não morrerei, tenho que tombar com as minhas qualidades intactas, agora já não há como amainar, agora não há como me arrepender e ordenar a ave voltar.

Dou um gole demorado, o líquido queima o meu interior me aquecendo e me fazendo me sentir ainda mais vivo, para morrer fresco como uma galinha degolada por um homem como eu.

Continuando, o homem que foi visitado pela ave recebeu cortes profundos que ninguém até hoje consegue explicar. Foi queimado de uma forma que ninguém foi capaz de explicar, na verdade, "pessoas normais", assim chamamos, você que não se juntou a nós para conquistar tudo que sempre achou impossível, nunca serão capazes de explicar o que acontece conosco quando chega a hora de partirmos para o lugar que só pode reservar algo pior.

Descanso a minha garrafa no chão e trago o meu charuto com classe como sempre, de um modo contínuo enquanto o silêncio me abraça com força e novamente volto os meus olhos para o céu que deixa eclodir um desenho do número 3 em raios nervosos que até atingem o meu coração falecido. Sinto algo estranho em mim, sim a ave está próxima.

Passo a mão direita pela barba e a minha cabeça tem a dor do futuro. Que coisa, a dor do futuro!!!

Continua…
†††

Vermelho PomboOnde histórias criam vida. Descubra agora