MORTEM (Atualizado em 27/11/2018)

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Quando abri os olhos tudo continuou escuro por um momento. Eu não tinha como saber se meus membros estavam respondendo aos meus comandos; droga, nem ao menos tinha como eu saber se meu corpo estava inteiro.

Mas eu podia escutar meus gritos. Na verdade eu gritei tanto e tão alto que meus ouvidos ficaram com um zumbido por longo tempo.

E quanto à luz? Nada, nem uma penumbra. Só havia escuridão e não tinha como eu saber se estava sozinho ou não, se alguém estava escutando meus gritos ou não, se eu estava inteiro ou não.

Enquanto eu tentava compreender a situação, aparecia uma única palavra à minha frente, como um letreiro extremamente brilhante de neon púrpura, a palavra era: MORTEM. Eu nunca tinha visto tal palavra, mas de alguma forma eu compreendia o que queria dizer: morte.

Apesar da incandescência luminosa daquelas letras, eu não enxergava mais nada.

E quanto a mim? Estava em algum tipo de pesadelo lúcido?

E ainda havia o silêncio. Silêncio total, quebrado apenas pelo zumbido nos meus ouvidos, criado pelos meus próprios gritos.

Por um momento eu desisti de mim, aceitei meu fatídico destino e me entreguei à sorte. Esperei. Mas meu corpo pareceu não aceitar minha desistência e uma terrível dor proveniente de cãibra que invadiu subitamente minhas costas e meus membros me fez debater-me. Mas isso foi bom por um lado, pois consegui sentir o espaço ao redor de mim. Eu estava em um espaço minúsculo, deitado desconfortavelmente.

Quando meu corpo acostumou-se mais às câimbras pude tatear ao meu redor. Definitivamente eu estava deitado em um recipiente estofado. Havia um forte cheiro de rosas que eu não havia notado antes. Quando eu tentei levantar-me não consegui. Bati minha cabeça fortemente contra o topo do recipiente, doeu e ao mesmo tempo ouvi um trincado. Senti sangue escorrendo pelos meus cabelos. Agora o cheiro do sangue se misturava ao cheiro das rosas. Tateei o local onde havia batido minha cabeça e cortei meus dedos com vidro, um corte raso, mas muito dolorido.

Comecei a suar quando percebi que já devia estar naquele local a muito tempo e que talvez ninguém fosse me encontrar ali. Viraria uma caveira fedorenta, com vermes percorrendo meu corpo podre e viveria preso no lugar onde passei meus últimos momentos de agonia.

Aquele terror de durar uma eternidade enquanto minha carne se decompunha começou a esquentar meu corpo, uma queimação lancinante, que começava pelos meus tornozelos. Era como se eu estivesse queimando.

E de repente, pareceu que meus olhos estavam finalmente se acostumando à escuridão, no entanto, o que realmente aconteceu foi que o recipiente onde eu estava começou a pegar fogo, e, um segundo antes de eu agonizar e chorar pela minha carne que estava sendo queimada enquanto eu ainda estava vivo, percebi onde eu realmente estava: em um caixão! Mas eu não estava morto, pelo contrário, eu estava muito vivo, e ansiava por viver, mas parecia que ninguém me ouvia.

E enquanto eu gritava, as línguas de fogo percorriam toda a extensão do meu corpo, e bolhas surgiam em minha pele e logo estouravam, dando lugar há uma pele chamuscada e enrolada, enegrecida e fedida à fumaça, não mais a rosas.

O fogo foi subindo. Primeiro, minhas pernas, que sacudiam o máximo que eu conseguia, tentando inutilmente se sair daquela prisão incendiária; depois os quadris, e eu levantei as mãos, adiando o inevitável. Quando o fogo havia chegado até o meu abdômen a dor era insuportável, mas uma sensação de frio foi tomando conta, e quando o fogo começou a consumir minhas costas eu estava em estado de choque, paralisado, observando meu corpo ser carbonizado, desintegrado, consumido pelo fogo.

Quando o calor passou e o frio era a única sensação que eu percebia, me notei leve e que estava a uma certa altura do chão, que meu corpo e o caixão que o guardava estavam dentro de uma câmara de concreto, com chamas tão laranjas quanto o entardecer.

Pude atravessar as paredes e percorrer o local até onde estava minha família, olhando através de uma grossa camada de vidro temperado os meus últimos momentos. E isso de certa forma é irônico, pois foram realmente meus últimos momentos de vida.

Cheguei próximo dos meus filhos primeiro, Raul e Rebeca. Tentei beijá-los, mas não consegui, tentei abraçá-los mas não consegui. Eles não mais me ouviam, eu sou um espírito agora. Tentei chorar com eles, mas nem isso consegui.

Uma agonia insuportável de poder estar tão perto, ver e ouvir, mas não poder tocá-los me tomou e eu desejei não mais existir por inteiro.

Minha mulher estava linda de preto. Os olhos inchados e vermelhos. Ela me amava, tenho certeza disso, foram 46 anos de amor. Os cabelos louros dela iam até as omoplatas, e mesmo não podendo mais sentir o cheiro naquele momento, eu lembrava do aroma dela.

Ao lado da minha mulher meu irmão que eu quero tanto bem. Ele a consolava, abraçava-a com uma mão em seu ombro e outra gentilmente cedendo apoio ao cotovelo.

Minha esposa permaneceu imóvel, vendo as línguas de fogo consumirem meu caixão, mas quando meu irmão disse que era o momento de me deixar e esperar na sala de apoio, ela desabou em choro.

Eu tentei acompanhá-los, mas aquele foi meu último contato. Por mim, ainda estaria a observá-los, ajudá-los sempre que possível, se possível. Mas quando eles deixaram aquele ambiente, fui bloqueado por um campo invisível, e arrastado como se houvesse um sugador gigante me puxando para o local onde hoje estou. Daqui não os vejo mais, mas os espero.

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