A Catástrofe de Magnólia

21 1 0
                                    


Bem como tenho dito, sempre acontece com as melhores pessoas do mundo: ninguém jamais fica impune; uma hora é preciso pagar. Mas de que pecado estou falando, então? Claro que estou falando do roubo do medalhão de guerra do meu bisavô. Aquele maldito mão de vaca foi enterrado com toda a sua riqueza e apenas deixou para seu único filho, meu avô, uma medalha de ouro. Medalha esta que ele se recusava a entregar ao banco nos momentos de necessidade. Ela foi passada para o meu pai, e depois para mim. E, de mim, foi roubada pela impetuosa Magnólia de Sá.

Magnólia de Sá é uma mulher impiedosa e de índole questionável, por quem me apaixonei no momento em que pus meus olhos cansados sobre ela. Eu tinha apenas 37 anos, enquanto a magnífica dançarina de bar tinha seus 35. Movia-se feito uma "mocreia", carregando um copo de cerveja que sempre estendia para o alto, como se oferecesse ao lustre do boteco. Ela era baixa, tinha cabelo tingido de roxo, liso e ralo, preso por um elástico barato. Usava roupas apertadas, que insistia que lhe serviam. Ela não era gorda, mas também não vestia 36. Já estava para lá de Bagdá quando entrei na espelunca.

Sentei-me em uma mesa de onde podia vislumbrar com nitidez a mulher que outrora desejei me casar. Pedi um copo com um pouco de rum e Coca-Cola e, desengonçado, fui até ela, propondo uma dança. Pude então vislumbrar seu rosto: faltavam-lhe um ou dois dentes na parte de trás da boca. Ela usava uma base um pouco mais clara que sua pele, o que a fazia parecer um palhaço, além de um batom horripilante, vermelho e barato, e uma sombra púrpura. Ah, neste ponto eu já estava apaixonado. Esta "mocreia" tinha de ser minha. Convidei-a a sentar-se à minha mesa, pus minha mão em seu rosto, e logo ela meteu a mão na minha cara, consertou sua blusa decotada e disse:

— Ai de ter respeito comigo. Estou bêbada, mas sei tomar conta de mim.

Senti-me constrangido, pedi mil desculpas e lhe ofereci mais uma rodada do seu "goró" favorito. A garota bebia com a fúria de um dragão e arrotava como tal. Tivemos diversas conversas profundas naquela noite: como ela seduziu um mecânico para consertar seu carro de graça quando voltava de um forró na cidade vizinha, ou o dia em que bebeu todas as cervejas de um bar antes das 2 da manhã. Cada vez que ela abria a boca, eu me fascinava ainda mais.

Quando deu a hora de fechar, eu já não conseguia me afastar da garota. Chamei-a para dormir no meu quarto de hóspedes e ofereci o mais caro whisky da minha humilde casa, um Red Label de 25 anos. Ela me olhou de cima a baixo, deu de ombros e falou:

— Melhor que dormir com cachorros.

Que mulher de classe...

Magnólia era para mim como Carmen Sandiego: aparecia às vezes na minha janela, dávamos uns amassos, e depois ela sumia. Eu, um homem de classe, usando terno e binóculo, mantinha-me ali, escrevendo meus arcos de novela para a emissora, em troca de migalhas. Sempre me via balançado pelo seu cheiro forte de álcool e cigarro quando, desajeitadamente, abria minha janela e adentrava. Era o refresco dos meus dias de glória. Que mulher incrível!

Porém, esta fantasia adolescente se viu findada no momento em que a vi sentada em um restaurante chique, muito bem arrumada, flertando com um galã de aproximadamente 50 anos, que lhe entregava um anel de diamantes, ou algo parecido. Meu mundo caiu. Oh, Magnólia, por qual motivo, razão ou circunstância fizeste isto a mim? Senti, naquela noite, a falta de muito mais além do seu cheiro; ocorreu-me também a falta da medalha. E desde então, já se fazem 20 anos que Magnólia desapareceu com minha herança, que usou para comprar o vestido que usava na noite em que me traiu com aquele bastardo abastado, ou simplesmente a roubou para trocar por drogas.

Ela jamais subiu à minha janela outra vez. Jamais senti cheiro forte de álcool e cigarro como o dela. Nenhuma mulher possuía os pré-requisitos para se tornar, para mim, a nova Magnólia. Nenhuma musa me inspirou tão ardentemente quanto ela. E ela há de voltar para mim.

Na noite em que seu galã sucumbir à doença incurável da velhice, virá a mim, minha doce Magnólia, fedorenta e moribunda, pronta para devolver a mim minha velha medalha, e dirá: "Meu doce José João Pereira da Costa Marfim Junior III, mil perdões pela noite infeliz em que deixei você solitário e sem amor. Privei você dos meus braços, e hoje eles lhe suplicam de volta. Dê-me uma chance de mostrar meu valor, devolvendo a você a velha medalha de seu bisavô."

Na vida, há algo deveras curioso, como, por exemplo, o fato de levarmos como verdade o que o narrador da história nos diz. Neste caso, lemos a perspectiva de José João, que tenho como dever refutar em suas crises existenciais por meio de alguns fatos descobertos após sua morte prematura:

Magnólia morreu dois meses depois daquele encontro com o galã. O homem a espancou até a morte, achando que ela o havia traído, quando na verdade ela só havia pedido um picolé ao atendente da sorveteria. Outras fontes dizem que ela morreu por overdose de heroína.

A medalha estava, afinal, em uma gaveta, cuja chave José João perdeu em uma visita ao mercado da cidade, enquanto ainda tinha encontros com Magnólia. O medalhão foi recuperado há três meses, dois dias antes da morte de seu dono, que caiu da escada enquanto trocava a lâmpada do banheiro. José João foi diagnosticado como mentalmente incapaz, o que explica a razão de se expressar como um senhor dos anos 1900.

Ao receber a medalha de volta, ele alegou que fora Magnólia quem a colocou de volta enquanto ele estava no hospital e suplicou por vê-la novamente. No entanto, ninguém teve coragem de lhe dizer que ela havia morrido há anos.

Ele escrevia, na verdade, para a Record e o SBT, nunca para a Globo, como sempre acreditou.

Seu bisavô não tinha um único centavo, por isso deixou apenas a medalha para o filho. A condição mental de José João o fazia acreditar que o bisavô era rico.

F IM

Contos, Crônicas e CatástrofesOnde histórias criam vida. Descubra agora