VENTO NO CORAÇÃO

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É festa e estou ao ar livre. Uma modorra da noite me devassa, um langor, sei lá. Tudo serenando e a vida é linda. Olho tudo meio de lado, mas participo, vivo e intenso, daquilo que é riso e correria, e beijos dados longe da multidão: aquele rapaz, cujo nome esqueci de perguntar, demos um beijo ao relento, e era tudo calmaria e a água emanava da grama, e tudo era silencioso e tinha um cheiro suave de chuva. Voltamos à multidão. A gente nunca mais vai se ver.

Todo aquele patamar tremeluzia, e os copos assomando numa dança, vertendo um fluido azul, docinho. Saímos do sereno, voltei à existência e percebia, quase de relance, que quem mais se diverte em festa é quem tem uma saudade e guarda a angústia num quadro ou gaveta. A vida vem devorando, e subitamente a gente percebe que a vida foi, devagarinho, deixando a gente em frangalhos, consome a gente até a última força, até criarmos raízes numa coisa solitária e sem brilho. Eu quis correr de mim, mas aonde quer que eu fosse, lá estava meu coração, constrangido e humilhado. E as escapatórias que os sábios cansam de elencar são a saudade num espelho (por que é tão difícil ser mais-que-humano?). O coração da gente não tem nenhuma salvação. Eu estava amando a tudo e a todos, mas como eu queria morrer naquele dia.

E eu tenho uma ligeira desconfiança que toda aquela felicidade e padecimento, tudo junto amalgamado, que tudo aquilo é em seu nome. O nome de Luan vem a mim, num instante de solitude, o dono das minhas horas, quando a música alta e a luz fremente cessam só pra mim e eu fico inebriado, flutuando naquela sensação. "Você me dá saudade, saudade demais e eu não aguento". Eu queria que ele estivesse aqui e eu sei que não dá. Na verdade talvez ele esteja aqui nessa noite, perdido, não sei onde, mas procurar não vale a pena. Quem eu perdi já morreu, não é mais quem era antes.

Eu fico embalado por essas ideias, elas velam meu sono, se ocupam de mim me contaminam. "Por que eu deveria temer perder você? Te perder não era o próximo passo, o passo meu?". É um passo meu e eu devia ter coragem. Eu fico deitado na cama, ventinho, bermuda, deixava a tarde me lamber e indagava as palavras certas. Eu queria cobrar um minuto de carinho, um instante de conversas sem amarras. Bobagem. Eu não precisaria exigir nada disso, mas essa casca que embala seu coração, essa casca é tangida por algo e se desata? Ele pode se render a um instante lânguido de langor, redento, se dar, sedento a um algo que se sente, e que desperta uma dúvida leve, à qual se render é lindo e se faz necessário? Ele não vai apontar os caminhos, nem dizer as palavras que dizem o que parecem dizer. Eu me constranjo, me morro, choro de ciúmes e lamento ser quem sou. Na verdade, se eu fosse sim, algo diferente, talvez tivesse mais sorte. Não porque talvez não o desejasse. Queria desejá-lo e ser o que ele nem sabe que quer (e o que eu sou talvez já seja tudo isso e muito mais). É um instante manso de descanso, eu queria mostrar pra ele como eu sou incrível, queria que ele me visse sorrir daquele jeito brando, o mesmo que eu dei quando ele me lançou seus olhos cor-da-noite-escura, que desenhavam uma entrega doce, descuidada. "Você precisava ver o sorriso que me enlaçou, te enlaçando". E acho que tudo bem, a angústia fica, a noite vai passar e Luan não vai me ver.

Eu e Luan nos conhecemos numa curva do rio, numa manhã de sol qualquer, sob as árvores. Ele disse me amar muitas das demais vezes, e eu retribuía o gesto e sabia que a minha palavra devia ser medida numa fórmula simples, porque minha palavra ia perder o controle. Minha palavra frequentemente se torna algo real quando acredito nela com firmeza. Dizer e acreditar: o arco e a flecha contra o peito. E dito e feito.

Acho que tudo isso não pareceu algo mais que um longo sonho. Eu fiquei triste demais. E inseguro, e não sei como vai ser daqui pra frente. Luan, de sorriso pródigo, me fez acreditar que era assim que eu merecia ser tratado, esse era o amor que eu merecia e precisava mais que qualquer coisa. Mas não são só palavras ao vento, não é só uma lembrança. Existe o algo mais. "Luan, você me confunde demais, Luan, eu não te entendo". Isso me devasta. Eu não me arrependo de ter dito nada, não me arrependo de nada em relação a ele, não o odeio, nem ressentimento guardo. Mas se eu pudesse ter escolhido, naquele dia, não dizer a palavra certa, a para-sempre-palavra, eu não diria nada, daria a volta, pegaria o ônibus e, no dia mais normal de todos, iria pra casa tranquilo, no embotamento das coisas comuns. Mas não é isso arrependimento? Eu tenho que pensar com mais, muito mais calma. "Agora eu tenho a oportunidade da vida sem você", mas agora essa vida é o vazio. Meudeus como eu morro de saudade. Essa vida é o vazio e Luan me toma de assalto, cada passo que eu dou, cada copo. Estou muito embriagado, começo a chorar num canto, e fiquei muito tempo até uma mulher pegar na minha mão, olhar nos meus olhos. Eu vi, naquela hora, duas imensidões etéreas. "Mulher gentil, que não sei o nome, eu sou muito grato por tudo que você me disse, seja lá onde estiver".

Resolvi ter coragem. Me levantei e sabia que os dias assim estariam por se repetir. Mas não faz mal, eu já sofri antes, e hoje nem me lembro tanto. Eu penso ainda em Lucas e Letícia, mas passou. Tudo passa. Tudo passará. Vou deixar o choro vir sim, e vou ter que seguir assim. Vou tentar lembrar que não sou assim cheio de defeitos, rejuntar os lados retalhados de mim, deixar as cicatrizes assim comporem quem sou. Com o tempo me conserto e me percebo vivo, e inteligente, e capaz, e lindo. Luan me dizia, raras vezes (lembro todas) que eu era lindo. Talvez seja assim, e assim vá. Resolvi ter coragem. Aquela mulher foi embora pra sempre, nunca vamos nos ver de novo. Serei forte e bruto com as coisas, vou conter meu impulso de dizer NÃO. Vou ser flexível e intenso, vou correr no deserto de mim, um cavalo morto de sede, depurando as distâncias do infinito. E a chama dentro de mim vai perdurar para os próximos encontros dolorosos, quando eu voltar às noites brandas e emanações da grama, e beijar desconhecidos, e estar com os amigos, e me perder. Essa chama vai arder, e serei forte, só assim para arder na tormenta, na água, na grama, num dia triste, num domingo. Luan foi tudo para mim, uma emoção, um sopro. Um frio na barriga, frio em tudo, no calorzinho manso. Mas não vou dar esse passo, eu resolvi ter coragem, "não preciso de uma vida sem você". "Eu vou te deixar, força da natureza, fazer o que quiser de mim, eu te desafio". Vou deixar tudo ser. Não vou fugir. Que sopre, sopre forte no meu peito esse sopro morno e agridoce, que é tudo pra mim, e tão vazio de sentido. Sopra, sopra no meu peito. Eu tenho coragem, eu sei do que sou feito.

VENTO NO CORAÇÃO (OU A REDENÇÃO PELA MULHER GENTIL)Onde histórias criam vida. Descubra agora