O início

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  Dia chuvoso, não vejo quase ninguém.  Olho para um lado, vejo flores e o verde do campo. Olho para o outro, e vejo minha mãe, tia e meu amigo. Pelo visto o único,  já que não apareceu mais ninguém em meu enterro.

  Sim, eu estou morto. Não digo que estou descansando porque não estou. Estou pensando na vida enquanto ela ainda existia. Carregando arrependimentos e tristezas, ainda mais ao olhar minha mãe chorando como nunca havia chorado antes. Isso fere até mesmo os mais fortes, porque mãe é mãe, é universal.

  Três pessoas no meu velório... Estou indignado com isso. Tudo bem que fiz muitos inimigos, mas também fiz muitos amigos. Na verdade, eu achava que tinha feito.

  Toda vez que alguém morre, o primeiro pensamento é uma pergunta: "Como ele morreu?". Creio que vocês estão se fazendo a mesma pergunta. Eu respondo,  mas não aceito julgamentos até o fim da história.  Tudo tem um motivo, e vocês precisam reconhecer o meu, analisar a história de um outro ângulo: o meu ângulo.  Acredito que assim poderá chegar a um julgamento aceitável.

  Tudo começou quando eu tinha 15 anos de idade. Um negro da classe C, de ombros largos e bigodinho da puberdade. Nessa idade, qualquer pelo que aparece é lucro. Eu não fazia sucesso com as garotas, não tinha estrutura pra isso. A maioria das G

garotas de escola pública,  com 15 anos, você só pega se tiver a manha ou se tiver dinheiro. Eu não tinha nenhum dos dois. E é nessa idade que os hormônios masculinos começam a se exaltar. Resumindo, eu era louco por uma buceta, mas não conseguia comer nenhuma.

  Alice, pele parda, olhos cor de mel e cabelos castanhos e cacheados, era uma exceção à regra. Enquanto as outras eu só queria pegar, ela eu queria namorar. Eu estava disposto a fazer de tudo para conquistá-la. Esse foi o meu primeiro erro.

  Fizemos um dos poucos passeios que a escola oferecia,  então tínhamos que aproveitar bem. Foi para o Museu de Artes Modernas. Chato que só a porra. Não entendo qual a graça daquele bando de coisas sem nexo. Mas Alice achava graça, então eu também tinha que achar. Ela olhava maravilhada um quadro com um borrão de cores que até hoje tento ver a beleza dele. Mesmo assim me aproximei e falei:

- Bonito esse quadro. Bem expressivo.

- Muito expressivo! - ela respondeu - Achei que só eu via graça nessas obras.

- É, eu curto algumas também.

Uma das minhas qualidades era saber ouvir. Então eu a ouvi falar das obras que ela gostava, mas eu não estava prestando atenção.  Os olhos dela e a boca eram lindos. Eu sei, tá chato já.  O que ela tem a ver com minha morte? Na verdade, ela representa o início.  Vou explicar.

  Nos tornamos muito amigos, então ela havia me chamado pra casa dela. "Porra, agora sim", pensei, "vou pegar ela no quarto dela". Eu já fui nesse pensamento,  levei até uma camisinha que minha mãe havia me dado.

  Cheguei à casa dela. Era perto da minha, morávamos na mesma comunidade, a Rocinha. Quando cheguei, ela me recebeu, dizendo que os pais não estavam em casa. Pronto,  eu já fiquei de pau duro só de pensar nisso, mas broxei quando vi dois caras maiores que eu fumando no sofá dela.

  - Isaac,  esses são Bola e Feijão. Amigos meus que vão curtir essa tarde aí com a gente. Toma, acende aí.

  Ela me entregou um cigarro de maconha. Eu nunca havia fumado antes, sabia nem como funcionava isso. Mas fiz o que via nos filmes e lá estava eu, fumando e sentindo meu mundo girar.  Que sensação foda! Eu já tava rindo das histórias do Feijão. Porra, eu tava fazendo tudo por aquela garota. De repente, feijão disse:

- Gostei de você,  mano. Amanhã quero te ver lá no meu barraco, tem umas paradas maneiras lá.  Dá pra curtir.

  Confirmei presença e depois de um tempo fui embora.  Encontrei Italo no meio do caminho.  Italo era meu melhor amigo, contava tudo pra ele. Branco de cabelo castanho,  também não tinha a manha, mas  pegava alguém de vez em quando. Nessa hora eu lembrei do trabalho que eu ia fazer hoje com ele. Expliquei a situação e ele entendeu.  Porém,  quando contei como foi, ele ficou puto e começou a me dar lição de moral. Foda-se ele, eu tava chapado.

  No dia seguinte, fui à casa do Feijão. Já tinha mais gente que ontem, mas Alice tava lá,  então tava ok. A resenha rolando normal até quando batem na porta. Feijão manda Bola abrir e eu escuto dois tiros. Desesperei. Ouvi gritos e mais barulhos de tiros. Me escondi, mas pude ver tudo. Já estava rolando uma troca de tiros, e Alice foi baleada na perna. Alguém precisava socorrê-la,  mas eu tinha que passar por aquele tiroteio. Ela estava do outro lado da sala.

  Feijão olhou pra mim e gritou:

  - Oh filho da Puta! Pega aquela pistola ali no chão! Me ajuda nessa porra!

  - Eu não sei atirar! - gritei de volta

  - Foda-se! Aprende ou eu atiro em você!

   Falando assim, até o papa vira bandido. Peguei aquela pistola que hoje reconheço como uma glock. Comecei a atirar descontroladamente enquanto Feijão gritava:

   - Acerta essa porra, seu viado!

  Um cara apareceu na janela atrás de feijão.  No reflexo eu atirei. Não queria nem saber se era perigoso ou não.  Dei 3 tiros, e só um acertou nele. Ele caiu. Fiquei parado, espantado. Eu nunca havia matado alguém.  Nem percebi quando o tiroteio acabou.  Eu ainda olhava espantado para a janela. Quando me dei conta, Feijão estava pegando Alice no colo pra socorrer e me chamando pra sair de lá o mais rápido possível.  Larguei a arma e saí junto com eles. Ele me parou, olhou nos meus olhos e falou:

- Agora, tu é dos meus.

A vida em um outro ponto de vistaOnde histórias criam vida. Descubra agora