Um

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Despertadores são um saco. Sério mesmo, o quê foi que pensaram quando o criaram? Foi algo do tipo - "Vou criar um aparelhinho irritante pra obrigar os outros a acordarem!" - e assim surgiu. Meu corpo se move automaticamente pra fora da cama, e logo encaro espelho. Cara amassada, tranças emaranhadas, nada de novo por aqui. Sigo direto pra cozinha, onde minha mãe me esperava. Um cheiro delicioso de café tomava conta do ambiente, a luz matinal atravessando a janela me convidava para o dia lá fora e trazia uma ótima sensação de conforto. 

- Finalmente acordada, Kamila? - disse minha mãe, no momento que coloquei os pés na cozinha. - Ouvi aquele despertador berrar diversas vezes, pensei que nunca mais iria levantar. - e como sempre, soltando uma risadinha ao final da frase. 

- Preguiça, mãe, você sabe. Nem se o céu estivesse desabando eu seria capaz de acordar. - completei, brincando. Os risos que trocávamos pela manhã me enchiam de alegria, e acreditava que nada estragaria um dia tão bom quanto esse.

Juntei a mochila e dei um beijo de despedida em minha mãe, e enfim, saí de casa. A luz do dia preenchia as ruas, dando às calçadas uma cor alaranjada. A cada espaço que sobrava entre as casas do Jardim Peri dava lugar ao sol e à brisa que passava levemente em meu rosto. De longe, vejo alguém chegando na minha direção, acenando os braços e chamando meu nome. E logo percebi quem era. 

- Laura! - gritei. Era minha amiga, que sempre me acompanhava à caminho da escola. - Espera aí! Já estou indo! - completei. 

- Anda logo, Kamila, vai se atrasar de novo!

                                                                              * * *

Até que foi um dia relativamente normal na escola, levando em consideração aulas tão cansativas e que te fazem pegar no sono. Já havia passado um período de 8 horas, e após o sinal berrar nos corredores, um mar de alunos tomou conta. Todos saindo apressados como se não houvesse amanhã, ansiosos por aquela liberdade depois de ouvir professores falando por horas. Depois da saída, me encontrei com meus amigos. Fazíamos companhia uns aos outros no caminho de casa, dividindo experiências que tivemos hoje e falando sobre a mesma bobeira de sempre.

Nos separamos numa esquina, dali em diante seguiria sozinha até minha casa, já era habitual, fui me acostumando aos poucos desde que meu pai parou de me acompanhar a caminho da escola. Desde que ele deixou de aparecer com um sorriso no rosto após a saída. Fazia tempos, e eram poucas as memórias que ainda me restavam dele, mas me agarrei à elas. Prometi a mim mesma que nunca deixaria elas partirem. E, por uma fração de segundos, senti como se houvesse alguém caminhando ao meu lado. Talvez eu estivesse tão distraída em meus pensamentos que realmente senti que havia alguém ali, mas não resisti a olhar para trás, só para ter mesmo certeza.

E realmente havia algo.

Era como uma sombra, ondulante, que mesmo num dia tão ensolarado, carregava uma penumbra, encostada num canto qualquer da esquina.

Não pensei duas vezes, corri o mais rápido que minhas pernas pudessem aguentar. Meu coração foi ficando cada vez mais acelerado, como se fosse pular pela minha boca. Ainda havia um longo caminho para casa e decidi recostar em um poste para recuperar o fôlego. Tentei resistir em olhar para trás mas a vontade e curiosidade foi mais forte que eu. 

A sombra se aproximava, ficando cada vez mais rápida a cada passo. 

Senti o desespero tomar conta e voltei a correr, dobrando esquinas com tanta rapidez que meu professor de educação física ficaria orgulhoso. O suor frio escorria pelo meu rosto, minha respiração ofegante conforme aumentava a velocidade. Até que, finalmente, avistei minha casa. Uma sensação de alívio tomou conta, e pensei finalmente estar segura do que seja lá o que estava me perseguindo.

E, bom, claramente eu estava errada. Depois de uma luta ao tentar encaixar as chaves na fechadura com as mão trêmulas, finalmente entrei em meu lar. Chamei por minha mãe, e ela não estava em lugar algum. Pensei em ligar, mas o telefone estava fora de área. Fui direto ao meu quarto, joguei a mochila na cama e tranquei a porta. Tentei me acalmar - só comecei a imaginar coisas - pensei comigo mesma. Vívidas demais, porém foi pura imaginação. E enfim, relaxei, me deitei e fiquei encarando a janela.

A sombra apareceu novamente. Ali mesmo, me encarando. 

- Ah mas você tá de sacanagem comigo, sua coisa! - berrei e joguei o travesseiro em sei lá o que era aquilo.

Aparentemente o apelido não pegou bem e também não gostou da bela travesseirada que dei. E num piscar de olhos, já estava dentro do meu quarto. 

Bom, heroica do jeito que sou, saí correndo de meu quarto chamando por minha mãe. A sombra ainda atrás de mim, enquanto jogava nela tudo o que vinha pela minha frente. Automaticamente, meus instintos de sobrevivência me fizeram esconder debaixo da mesa da cozinha, torcendo para aquela criatura não me encontrar. 

Abracei meus joelhos, rezando baixinho para alguma divindade fortona viesse me ajudar. A coisa fazia um estrago pela casa, tentando me encontrar e falhando miseravelmente. Até que, uma pequena faísca pareceu surgir dentro de mim. Me senti estranha, indiferente, queria gritar o que diabos estava acontecendo comigo?, até que uma voz pareceu emergir dentro de minha cabeça. 

- Mantenha a calma, criança. - disse calmamente aquela voz.

- Tem uma sombra ambulante quebrando tudo na minha casa e provavelmente querendo me matar. Tô bem calma sim, valeu por avisar. - resmunguei baixinho. 

- Não a julgo. Está passando por um momento de extrema dificuldade, entendo deste sentimento. Mas não há motivo para alarde. Concentre-se, Kamila. Concentre-se em sua força, chame os espíritos para si, eles irão te atender e irão te ajudar. - aquela vozinha me instruiu.

- Eu não entendo... O que é isso? O que tá acontecendo? - indaguei. 

- Suas perguntas serão respondidas em breve. Concentre-se, Kamila. Faça o que lhe falei. 

Num impulso, saí debaixo da mesa. Juntei a pouca coragem e determinação que ainda me restava naquele momento, e encarei a sombra. Respirei fundo, me concentrei na força que queria encontrar para lutar. Pensei nas lendas xamânicas que meu pai me contava antes de dormir. Os espíritos irão sempre te guiar, Kamila, basta acreditar neles. Lembrei sobre o Jaguar Solar, o garoto que queria se tornar xamã. O jaguar era inabalável, poderia vencer todos os inimigos que aparecessem, era o mais poderoso e feroz que havia na Terra.

Sem nem mesmo perceber, meu corpo já estava em movimento, quase que automaticamente. Numa dança, onde meus pés e braços estavam em harmonia com os espíritos. Foi-se então formando a forma de um Jaguar Solar. Com dentes salientes a mostra, o rugido inigualando-se a um trovão. Continuei minha dança, tornando os passos cada vez mais velozes, sentindo como se realmente estivesse no corpo de um jaguar.

A sombra foi aumentando, enfurecida. Me aproximei dela, sem medo algum. E num estalar de dedos, o jaguar pulou sobre ela. 

Ela se foi. E com isso, minha visão. 

Ficando cada vez mais turva, me senti esgotada. Toda aquela dança e força exigiu muito de mim. 

Tudo foi perdendo o foco, me senti tonta, tentei me agarrar em alguma coisa.

E no fim, minha visão escureceu totalmente, e caí no chão frio. 






Xamã - Entre Dois MundosOnde histórias criam vida. Descubra agora