CAPÍTULO DOIS - CARONA

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O clima se assemelhava cada vez mais com um deserto pressurizado naquele carro. Subitamente o SUV parecia ter virado um Fusca de 1945 quando Gabriel me encarava tão descaradamente, como se quisesse descobrir o que passa na minha cabeça com aquele olhar fixo, centrado em um ponto além do que é visível em mim. Será que ele não sabia que aquilo era muito deselegante e constrangedor?

Minhas bochechas estavam queimando em vergonha, mas se me perguntasse, diria sem pensar duas vezes que era o frio insuportável que assolava o país inteiro durante aquele inverno. Uma frente fria vinda do ártico que já fez mais de vinte óbitos só no nosso estado. Era uma péssima época para moradores de rua, não que as outras não fossem igualmente ruins.

Meu pai havia trabalhado em algumas políticas públicas para resolver esse problema, eram projetos muito bons, mas quando se trata de usuários de drogas, é bem mais fácil criar uma medida preventiva que tentar remediar o caos. Os óbitos eram a prova disso:

— Por que você fica me encarando? — Tomei coragem para perguntar, mas não o suficiente para encará-lo de volta, naquele olhos marrons que se assemelhavam a buracos negros, e eu perto demais de seu horizonte de eventos.

— Não sei — respondeu com um meio sorriso intrigante — acho que você é uma pessoa interessante de olhar. Sem contar que estamos quites né. — Exibiu um sorriso malicioso de quem coloca um segredo íntimo a mesa para que todo pudessem analisar.

Engoli a seco sua provocação, sem saber como responder adequadamente. O que diria? Que estava encarando a beleza da porcelana do mictório e não quem o utilizava? Que ele entendeu errado a situação?

A verdade era que eu temia a verdade sobre o ocorrido, então resolvi fingir que não me abalava em nada, que mal lembrava daquilo de tão corriqueiro que foi. Esperei não falhar miseravelmente, mas o fracasso, como sempre, foi inevitável:

— Ah, aquilo mais cedo... — soltei uma risadinha brincalhona que acabou saindo extremamente forçada. Ele percebeu. — Nada anormal né?

No exato instante que esse som passou pelos meus lábios, me arrependi amargamente de tê-lo produzido. Todos os meus neurônios pareciam entrar em colapso um após o outro. Como assim “nada anormal né?”? Não soou como eu pensei que iria.

— Claro que não. — Respondeu brincalhão. — Estamos no século vinte e um, cara.

“Não foi isso que eu quis dizer!” quis responder, mas preferi ficar calado antes que piorasse as coisas. Voltei meu olhar para o trânsito caótico da avenida cercada por prédios comerciais que pareciam cena de uma realidade futurística, contrastando com todo o resto da cidade, que parecia ter sido esquecida no século XVIII, com suas construções rústicas de cor acinzentada, projetadas para serem exatamente igual umas às outras. Alguns diziam que aquele era o charme da cidade, já eu achava extremamente ultrapassado arriscado mantê-las sem qualquer restauração ou ao menos uma atualização no sistema elétrico.

Tentei esquecer quem estava ao meu lado e a conversa extremamente constrangedora de um minuto atrás, entretanto tudo indicava que seria um longo período devido um acidente em um trecho mais a frente que paralisara completamente o trânsito e a previsão era nada animadora: abririam apenas uma faixa em meia hora. Todo o percurso com um elefante enorme no banco de trás, nos encarando:

— Eu não quis ser invasivo — comecei — no banheiro mais cedo. Foi um lapso, sei lá.

— Eu já disse. — Fez uma pausa dramática — Está tudo bem olhar. — Assegurou ele, exibindo um sorriso travado antes que pudesse chegar ao seu ápice.

— Não está não. — Neguei — Não sou gay, não queria ter passado essa impressão.

Ele soltou um “ah” antes de se calar por alguns segundos, sua expressão era um misto de decepção com divertimento, como se achasse graça do meu desespero. Na verdade, era experiência de quem já havia estado no meu lugar antes.

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