Eu acho que a gente devia poder escolher a família, os irmãos, os parentes, porque recebe tudo num ''pacote'' só, dentro do kit família, e tem que conviver com eles o resto da vida.
Sou filha única, então não tenho problemas com irmãos. Mas ouço as minhas colegas reclamarem que os irmãos delas são uns grudes, ficam vigiando o tempo todo: hora de voltar das festas, os amigos, namorados etc, ou, ao contrário, são superindiferentes, não estão nem aí. Difícil mesmo é ter irmão gente boa, com quem elas possam se abrir, como fazem com os amigos de verdade.
Eu tenho pai e mãe que eu não escolhi, claro. Eles também não me escolheram, só me fizeram, então a aceitação tem de ser mútua, né? E aí que o bicho pega.
Do meu pai, o Rogério, até que eu não tenho muito o que me queixar: ele é dez. Além de ser bonito, o que já dá um certo gabarito, é charmoso e inteligente. Com aquele uniforme de piloto, então, eu até concordo quando as garotas dizem que ele é o maior gato.
Ele não é machista, o que também é dez. Aceita o trabalho da Viviane numa boa; dá a maior força. Não é daqueles metido a manchões que dizem com o maior orgulho: ''mulher minha não trabalha''. Credo, eu pensava que essa raça estava em extinção, mas ainda tem homem que é exatamente assim. O pior de tudo é que muitas mulheres seguem à risca o que os maridos determinam... Por isso eu acho muito certa aquela frase que li não sei onde: ''toda vítima é cúmplice do seu algoz''. Faz sentido, não faz?
Por ser piloto de avião, o Rogério viaja muito e fica um tempão fora de casa: ele faz rota internacional. Eu aprendi a conviver com isso; é legal receber os telefonemas, os cartões- postais e esperar pela volta dele, quando vem carregado de presentes, principalmente para mim.
Quando eu ainda era criança, ele me trazia uma boneca típica de cada pais onde ele passava. Tenho a maior coleção de bonecas, maravilhosas. Faz tempo que não ligo para elas, cresci, elas agora ficam empoeirando lá numa prateleira do meu quarto, enquanto a Viviane pede:
-Veja se cuida das bonecas, Layla. Depois você se queixa da sua rinite alérgica.
A Viviane é muito chata. Com meu pai, eu acho que tirei a sorte grande, porque ele é legal, não implica comigo, eu serei sempre a ''menininha dele''. Dificilmente ele me dá bronca, sabe dialogar numa boa, é supercompreensivo.
Já a Viviane faz a linha de dura. Ela diz que é muito fácil para meu pai posar de bonzinho porque ele fica o tempo todo longe de casa, e cabe a ela me educar e impor limites. Então ela á que se torna a madrasta malvada.
Concordo que não sou exatamente a filha que a Viviane deseja. Sou bagunceira, desorganizada, não ligo para a roupa; aliás, passo mais tempos vestida com o uniforme do colégio que outra coisa. Adoro minhas camisetas velhas, meu jeans desbotados e rasgados nos lugares certos e meus tênis velhos, sempre sujos.
A Viviane enlouquece só de me olhar. Ela diz que nunca vi uma garota tão sem vaidade como eu. Ela implica com meu cabelo - eu até concordo, ele é uma porcaria mesmo -; com as minhas espinhas - eu exagero no chocolate, principalmente quando fico carente, e estou quase sempre carente-; com as minhas roupas e porque não passo nem um mísero batonzinho. Eu acho que ela queria uma filha princesa de contos de fadas, mas tem de encarar, todos os dias, uma borralheira, e, o que é pior, sem fada madrinha.
De manhã, quando ela me leva ao colégio, é sempre o mesmo discurso:
-Está na hora de se cuidar mais, Layla, você cresceu, deixou de ser menina; precisa para de comer tanta porcaria, cuidar mais da pele, entrar numa academia para fazer um pouco de ginástica, ao menos natação. Você é muito sedentária, se tranca naquele quarto e fica fazendo sei lá o que...
- Será que você quer controlar até os meu pensamentos, Viviane? Quer mandar até na minha alma?
- Como você é dramática! Quem foi que falou em mandar na sua alma, Layla? Eu só queria que você tivesse um pouco mais de auto-estima. Vaidade na medida certa faz bem, sabia? Que garoto vai se interessar por uma garota tão desleixada como você?
Algo acende dentro de mim, como uma tocha olímpica: será que é por isso que o Pedro nem sabe que eu existo? Mas ele é exatamente igual a mim! Anda desmazelado, tênis velhos, cabelo arrepiados. Que moral ele tem para exigir alguma coisa?
-Você acha mesmo? - pergunto meio ressabiada.
A Viviane olha pra mim com rabo dos olhos:
- Por que o interesse súbito? Por acaso você está interessada em alguém em particular? Olhe que foi com a sua idade que eu conheci o seu pai, sabia?
- Com a minha idade? - essa vez fico ligada no assunto. - Dá pra fazer um resumo da coisa, sem transformar numa novela?
- Sempre agressiva comigo... Por que será que seu carinho vai todo pro Rogério, hein? No que eu falhei com você, me diga, Layla?
Nossa, até me surpreendo com a reação da Viviane. Justo ela, sempre tão autoconfiante, querendo se punir, quem diria. Mas, definitivamente, nesta manhã chuvosa, não estou com paciência para ouvir lamúrias. Estou mais interessada é no assunto do amor.
-Conte aí, como é que você conheceu o pai? Ele sempre foi um gato?
A Viviane breca no farol vermelho e sorri:
- Sempre. Ele era o garoto mais bonito do bairro e do colégio, as meninas morriam por causa dele. Era uma disputa para ver quem iria conquistá-lo. Naquela época, as garotas não se atiravam tanto para cima dos rapazes como fazem hoje, mas mesmo assim...- Ele devia ser convencido...
- Que nada, era totalmente sossegado, estava afim de ser piloto, sempre foi apaixonado por aviação. As garotas se derretendo por ele, e ele lá, com a coleção de aviões...
- E como foi que você teve acesso a esse objeto de desejo?
- Por puro acaso. Além de estudar no mesmo colégio que ele, morava no mesmo bairro. Mas. apesar de achá-lo bonito, não morria de paixão por ele. Meu irmão era colega de classe do Rogério e um dia o levou em casa, para mostrar a coleção de aviões. Sabia que seu tio também era fissurado em aviação? Ficaram horas só falando de modelos pra cá, modelos pra lá... até que a minha mãe pediu que eu levasse um lanche para os dois.
-Daí um olhou no olho do outro e... aconteceu!
-Que nada! - a Viviane riu, engatando a primeira. -Eu tropecei e dei o maior banho de suco de maracujá. Meu irmão me deu aquela bronca... Dá pra imaginar como são os garotos com as irmãs mais novas, e o Rogério só ficou rindo, se divertindo com a minha cara.
- Aí começou a rolar...
- Acho que sim. Ele começou a vir muitas vezes à minha casa e, quando dei por mim, estava apaixonada por ele. Mas sem a menor esperança, claro. Eu tinha pelo menos umas duas dúzias de competidoras no pedaço.
- E deu bandeira dessa paixão?
- De jeito nenhum. Você acha que eu ia me entregar de bandeja e bancar a oferecida como as outras? Fiquei na minha, disfarçando quanto podia... até que chegou o dia da formatura deles no colegial, e teve um grande baile.
- E você foi.
- Claro! Meu irmão estava se formando. E, lá pelas tantas, apareceu o Rogério e me tirou pra dançar. E, no meio da dança, ele disse: '' Estou apaixonado por você, quer ser minha namorada?''
- E você disse sim -completei, montando a cena toda na minha imaginação.
- Eu disse sim, com o coração acelerado. Foram cinco anos de namoro, dois de noivado e são quase vinte de casamento. E nunca me arrependi disso: seu pai é o homem da minha vida.
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Como é duro ser diferente
Novela JuvenilLayla é uma adolescente que se angustia porque se acha diferente dos colegas do colégio. Ela se julga um erro da natureza porque seus pais são muito bonitos.Olhando ao seu redor, porém, Layla percebe que outros jovens também sofrem com brincadeiras...