Episódio I

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Vergonha da Família

Quando D. Fafá conheceu suas novas inquilinas ela não pode deixar de estranhar a aparência das duas. Uma delas usava um véu como se fosse muçulmana cobrindo todo o cabelo, dois coquinhos se destacavam por baixo do pano azul escuro. A outra, parecia até doente de tão pálida e o chapéu de praia fez a senhora pensar que se tratava de uma gringa se não fosse pela sua cor e o sotaque pernambucano. Elas pareciam muito moderninhas pro gosto da mulher, mas ela apesar de achar estranho respeitava a individualidade de cada um, só não queria que nenhuma das duas desse uma cantada nela ou em uma de suas filhas. O apartamento ficava no Caxambi, bem na beira da Av. Dom Helder Camara e apesar de elas parecerem ter dinheiro suficiente para uma cobertura, optaram por um apartamento no sétimo andar. Alto suficiente para que quem passasse da rua não visse suas intimidades da janela, mas ainda assim não tão alto que chamasse atenção. D. Fafá entendia, muitas das lésbicas da sua idade também tomavam cuidado de não se expor demais, ela só sentia muito que a nova geração também tivesse que passar por isso.

Logo que entraram no apartamento a pernambucana pálida tapou todas as janelas deixando a sala num breu total. Apenas dois pares de olhos eram visíveis na escuridão, um deles era como os de um tigre pronto para atacar e o segundo eram totalmente vermelhos, como aquelas tatuagens que os jovens alternativos fazem hoje em dia.

­­­­- Liga logo essa luz Beta, eu tô toda enrolada com o hijab – disse uma delas, que quando a luz foi acesa entendeu qual era o problema, o pano estava todo embolados nos seus chifres.

- Deixa que eu te ajudo Santie – se ofereceu a mulher, agora já sem chapéu de praia que saltitou até a amiga para ajudar a desembolar o pano. – Prontinho, mais confortável?

Santoro e Alberta se conheceram pela internet, as duas eram jovens adultas que já estavam tendo problemas com a família desde muito cedo. Quando a amizade naturalmente floresceu elas decidiram abandonar tudo e recomeçar a vida em um novo lugar, para Alberta isso significou pegar um voo de Recife para o Rio de Janeiro e para a Santoro significou abandonar o inferno. Outro fato importante sobre as duas é que elas eram monstros. Não tipo do que batem em velhinhas ou jogam lixo no chão, elas tinham uma moral e preocupação com o meio ambiente bem maiores do que a da maioria dos humanos, mas elas eram criaturas imortais das histórias de terror que deixam crianças de cabelo em pé e fazem adultos gastarem dinheiro num novo filme ou livro. Santoro era um súcubo, um demônio sexual que se alimenta da energia vital de suas vítimas transando com elas, enquanto Alberta era uma vampira, uma parasita sanguinária que drenava a energia vital da vítima com suas presas. Ou melhor, essas eram quem elas deveriam ser. Apesar de D. Fafá ter pensando que estava alugando o quarto para um casal de lésbicas, na verdade a vampiro era bissexual e a demônio assexual. Santoro era ridicularizada pelos outros demônios por não ter interesse nenhum em sexo e por conta disso raramente se alimentar ou mesmo matar alguém até o dia que conheceu Alberta, uma vampira vegetariana que se recusava a consumir qualquer sangue humano ou animal que tivesse origem em sofrimento, optando por se alimentar através de transfusões de algumas bolsas furtadas de bancos de sangue. Cansadas de serem ridicularizadas, as duas por fim decidiram começar uma nova vida em um novo lugar.

Santoro logo arrumou emprego como bartender. Apesar de repudiar o sexo, ela precisava se alimentar ainda da energia sexual para sobreviver e para isso, os hormônios a flor da pele dos jovens que só faltavam transar uns com os outros na sua frente era um lanche confortável e aceitável. Mesmo ocasionalmente ela tendo que dar um chega pra lá em algum homem cis hetero inconveniente que falava que sempre teve interesse em transar com uma mulher de turbante. "É um hijab seu idiota" pensava ela quando os seguranças arrastavam um assediador para fora do estabelecimento.

Alberta por sua vez se tornou enfermeira num hospital em São Cristóvão, logo se destacando no trabalho por ser uma das únicas que fazia com gosto, e sem nunca reclamar, os plantões noturnos, inclusive aos finais de semana. Por vezes ela fez trocas de turno com colegas que reclamavam do horário avançado e de compromissos inadiáveis. Na verdade, para ela era bem mais fácil trabalhar a noite, quando podia surrupiar algumas bolsas de sangue sem muitas pessoas para evitar pelos corredores desertos do hospital.

Santoro e AlbertaOnde histórias criam vida. Descubra agora