As difíceis recaídas de Mário.

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As vistas de Mário estavam ainda mais embaçadas do que na noite anterior, quando ele decidiu tomar apenas um drink indicado pela mesma revista de mesinha de centro que ele insistia em guardar como enfeite ou entretenimento barato. "Caso apareça alguma visita assídua por assuntos genéricos e entediantes", ele repetia para si mesmo durante os primeiros três meses trancado em casa fazendo a mesma rotina.
A verdade é que no íntimo ele mesmo sabia que ninguém iria visitá-lo, pois além desse período catastrófico de isolamento, ainda havia  outros motivos que tornavam Mário uma pessoa completamente difícil de se conviver.
Seus filhos moravam com a mãe e o padrasto e tinham uma vida mil vezes melhor que a dele, pelo menos se alimentavam com frequência coisa que nem se quisesse devido ao vício assíduo de beber todos os dias, ele conseguiria fazer.
Rute, sua ex-namorada tentou por muito tempo permanecer em sua vida fingindo que o problema com o álcool nunca era suficientemente relevante para deixá-lo, no entanto na noite em que Mário decidiu beber além da conta e a amedrontou foi a gota d'água para que ela desistisse dele, e também o abandonasse. Em sua mente, ele não parecia ter gritado tão alto com ela, todavia os vizinhos provaram o contrário já que conseguiam contar a história e citar seus gritos com clareza e maestria.
Ele ainda tinha pessoas que tentavam se importar, contudo seu orgulho e ignorância conseguia fazer com que seu pai por exemplo recusasse na maioria das vezes apenas na tentativa de ligar e bater um papo normal.
Como se não bastasse o resto da vida de Mário não estava um mar de rosas, o aluguel estava se acumulando já que devido a quarentena ele não conseguia mais encontrar tantos trabalhos como antes.
"um passo após o outro", ele pensava com as vistas embaçadas, no entanto suas pernas pareciam começar a se enrijecer e mal conseguia pensar muito bem.
Mario não conseguia compreender por que não era amado pela família ou por que não tinha o reconhecimento que seu irmão tinha. "Meu irmão, o orgulho da família", ele pensava na maioria do tempo em que via as fotos do caçula nas redes sociais, a inveja sempre o invadia e conseguia  pulsar em maior quantidade no seu coração do que qualquer outro sentimento. "Mataria para ter tudo que ele tem", ele se pegou pensando em um dia ensolarado da quarentena.
O relacionamento com sua mãe nunca foi um dos melhores, no entanto ela ainda se importava com ele mais do que o avô que sempre o chamou de fracassado por tentar seguir o caminho escolhendo uma faculdade que não dava dinheiro, e quando Mário perdeu sua esposa, o avô dizia ter certeza de que o neto preferido era Arthur, o caçula.
Quando Mário tentou dar mais um passo tudo ficou escuro, e era como se o chão estivesse flutuando na sua frente, mas foi quando sua cabeça bateu na mesa de centro que ele sentiu a imensa dor, toda a dor física e rancorosa que ele guardou por anos.
A desaprovação na segunda graduação, o dinheiro perdido nas apostas de poker desnecessárias, o bullying que ele praticou com colegas de ensino médio, os comentários homofóbicos deixados nas redes sociais, a perda de seus filhos para uma outra família, todas essas memórias desagradáveis agora passava pela mente de Mário que sangrava em cima da quebrada mesinha vidrada de centro.
Sua cabeça latejava e quando ele pressionou os braços pra tentar se levantar do chão arfando, seus olhos se fixaram ainda com tudo muito tremido e embaçado na página principal da revista inútil de acordo com ele, e fazendo uma enorme força para focar a visão ele se deparou com uma pergunta gigantesca estampada "o quanto você é bom com o mundo?", e com um último suspiro, ele desmoronou, desmaiando novamente sob os cacos cortantes da mesinha de centro dada de presente de casamento por seu irmão caçula.

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