Lídia se sentia completamente renovada, a mudança havia demorado mais do que ela imaginava, mas agora ela finalmente parecia ter encontrado a paz que perdeu na maior parte da sua vida.
A relação tóxica com sua família, acabou a fazendo ser uma pessoa que tinha medo de tudo. Medo de sentir, de amar, de pensar em coisas novas, de ter opinião própria, e até mesmo medo do irmão que ela não tinha coragem de contatar depois da última briga em que tiveram.
Em seu cérebro a única coisa que ela conseguia pensar era em como depois de tudo que ela havia passado na vida, ainda tinha forças para ter esperança.
Mesmo com o mundo bagunçado da forma que estava, ela tinha a necessidade de sair do apartamento antigo, todo o problema com o síndico, os vizinhos barulhentos criando os filhos da mesma forma que ela foi criada a fazia ter traumas, e às vezes ela se pegava chorando sozinha desolada, mas nada disso importava mais, já que agora o cheirinho de tinta do novo apartamento dela a deixava anestesiada de qualquer lembrança ruim.
Olhando ao redor do apartamento agora ela pensava em todos os momentos que ela ainda iria ter, todavia foi quando a porta se abriu que ela teve a certeza que de que se o amor não fosse um sentimento abstrato ele estaria sentado pedindo uma xícara de café bem quente.
Lá vinha Ricardo, carregando o que parecia ser a última caixa.
-Não é tão terrível quanto parece amor. -Disse ele, ofegante.
-Ainda acho que podíamos ter pago alguns carregadores. -Falou Lídia com um sorriso bobo no rosto.
-E perder as memórias marcantes? -ele falou com um sorriso ainda maior do que quando ele ganhou o primeiro dez em matemática.
E se virando, foi retirar as coisas da caixa cinza, o que queria dizer que eram os utensílios de cozinha. Lídia o observava sutilmente na maior parte do tempo, ela não conseguia ser mais grata a alguém do que era por ele, como ela se sentia salva da família logo depois que o conheceu, como ele a ajudou com diversos assuntos pessoais e traumas, e o mais importante as terapias que ele não tinha porque acompanhar, mas se dedicou a ir por causa dela. Ela o amava mais do que qualquer coisa no mundo.
O sol agora invadia o ambiente, tornando o clima da tarde intenso e ameno, e ela teve brilhante ideia de abrir uma garrafa de vinho para que ficassem observando o fim de tarde pela área do apartamento que dava a maravilhosa vista para o centro da cidade, e assim foi, ficaram observando os carros, as crianças que tinham seu pequeno momento de lazer devido as restrições da saúde, o gramado do jardim de entrada do condomínio, até que a noite foi chegando de forma singela e delicada.
Por fim quando as estrelas começaram a surgir, eles decidiram entrar, "preciso de um banho", falou Ricardo timidamente, e assim ele foi pro banho e Lídia se dedicou a colocar sua leitura de Dom Casmurro em dia.
O silêncio mais que perfeito era rompido apenas pelos risos das crianças que brincavam descendo o escorregador do playground do parque do prédio.
Após alguns minutos ela já adormecia tirando alguns cochilos com o livro no colo, e Ricardo arrumava sua coleção de discos quando o interfone do apartamento tocou, retirando toda a paz silenciosa que ali existia.
De surpresa ela despertou eufórica como se algo a tivesse perseguido, e ele parando de mexer nos discos foi direto para o interfone atendê-lo sem que o barulho se alarmasse ainda mais.
Após alguns minutos da conversa de Ricardo com o porteiro, Lídia já se sentia incomodada, escutava algumas respostas dele e parecia estar confusa.
Ele voltou parando no meio da sala, tentando disfarçar a cara de surpresa que Lídia conhecia muito bem.
-Seus pais estão subindo...-disse ele com cautela, como se estivesse se preparando para um grande caos.
Ela de início não havia compreendido o que ele tinha falado, no entanto foi quando seus olhos se fixaram na cara séria dele que uma onda de temor a invadiu.
Nesse momento era como se tudo tivesse mudado, toda a alegria e felicidade que ela tinha cultivado o dia todo, foi se dissipando como se fosse um encanto chegando ao seu fim.
-Vá vestir uma calça! -disse ela apreensiva. E ele que estava apenas de bermuda, e sabia porque o desconforto se instalará no ambiente saiu andando.
Em menos de minutos a porta se abriu e lá estava os pais dela, um homem de cabelos castanhos que as rugas já tomavam conta da maior parte do rosto, e uma mulher de olhos azuis que as cicatrizes também começavam a surgir.
Ela ficou sem reação, apenas parou de frente para eles tentando afastar as lembranças ruins que insistiam em se fazer presentes. A troca de olhares sem nenhuma movimentação foi mantida até que sua mãe, Petúnia começasse a falar:-viemos conhecer seu novo apartamento, eu sei que você não nos convidou, mas gostaríamos...-ela pausou e reformulou sua fala. -Trouxemos até um vinho branco.
Lídia não conseguiria dizer não a sua mãe, na verdade ela nunca foi contra nenhuma vontade de seus pais desde a adolescência havia feito apenas o que eles queriam, então como de esperado ela os deixou entrar.
"Novamente, você está deixando eles entrarem", pensou ela assim que eles cruzaram a porta de entrada.
Ricardo veio caminhando na direção dela, quando percebeu que os pais da amada já estavam agora no meio da sala observando tudo com muito desdém. O estilo dele não havia mudado muito já que agora estava com uma calça de moletom.
O pequeno arco de assunto escasso de Ricardo durou por apenas uns 20 minutos, e como Lídia se mantinha aérea lembrando de todas às vezes que seus pais estragaram momentos de sua vida que eram para ter sido perfeitos, não demorou muito para que tudo ficasse silencioso.
Após um pequeno silêncio, sua mãe decidiu andar pelo apartamento sem ser convidada, como se fosse algum agente de vigilância sanitária a procura de algo, e seu pai ficou encarando Ricardo de cima abaixo que agora começava a ficar desconfortável.
Seguindo sua mãe sem falar nada, Lídia deixou seu pai e o marido na cozinha, mas seu pensamento só conseguia se voltar para alguma desculpa que os fizessem ir embora e a deixar em paz para sempre.
Sua mãe criticou tudo no apartamento, as janelas grandes demais, que Lídia explicou que davam uma ótima ventilação, as cores das paredes e Lídia sendo direta respondeu que gostava das paredes dessa forma, o carpete de madeira que Lídia parecendo perder a paciência respondeu:- É incrível, e está na minha casa, você não vai precisar vê-lo.
A mãe agora parou encarando-a, "se fosse a alguns anos atrás, ela teria me espancado", pensou Lídia observando o rosto flácido e com profundo desgosto da mãe.
Depois dessa pausa, elas retornaram para a sala que parecia estar da mesma forma que deixaram, o clima tenso e ambiente silencioso, seu pai agora olhava de Ricardo para ela como se procurasse uma pequena mancha ou algo do tipo.
E por fim, rompendo o silêncio seu pai disse:- um saco essa quarentena não? Preciso trabalhar e não me deixam.
-Fazem alarde por qualquer coisa hoje em dia.-disse a mãe se sentando no sofá com muita cautela como se tivesse alguma coisa que a mataria nele.
Ricardo fazia um grande esforço para não falar nada, mas não estava confortável com os comentários.
-Pessoas estão morrendo! - Lídia falou em alto e bom tom, os moradores do apartamento do andar debaixo haveriam escutado claramente se estivesse alugado.
-Ah...- suspirou o pai com desgoto e continuou. -Esse é seu problema, achar que pode salvar o mundo, mas olha não pode salvar nem a si mesma.
-Ela está em perigo? -perguntou Ricardo olhando agora diretamente para o pai de Lídia que fazia esforço para não encara-lo.
-Morando com você...-sussurou a mãe, agora olhando para a lâmpada como se procurasse algo.
-Vocês podem ir embora! -falou Lídia como se desse uma ótima solução, mas foi ignorada por todos da sala.
Um período silencioso se instalou novamente até que mais uma vez seu pai resolveu quebra-lo.
-Não consigo entender o que você viu nesse homem Lídia, nós arrumamos Daniel pra você, um cara de bem...- ele foi cortado por Ricardo. -O verdadeiro motivo da visita.
-Todos nós sabemos que gente da sua laia não deveria se envolver com a minha filha.-disse o pai de Lídia.
-gente da minha laia? -disse Ricardo fechando os punhos, e Lídia correndo passou na frente do marido o impedindo de caminhar na direção do pai.
-Covenhamos...-a mãe falou com um tom de quem tem plena convicção do que diz -um preto como você? com uma menina da classe alta?
Lídia virou-se para o olhar para a mãe que agora passava a mão sob o sofá com nojo nos olhos como se tirasse uma poeira invisível.
Todos os momentos passaram pela mente de Lídia, mas o que se ficou foi o momento em que encontrou com Ricardo pela primeira vez. Era um dia frio, e ela andava pela biblioteca da faculdade a procura do livro de direitos humanos para a revisão da prova. Quando chegou ao fim do corredor, escutou uma voz que a chamou a atenção, uma voz doce e gentil que explicava a diferença de direitos e privilégios entre as classe sociais, e lá estava ele, sendo líder do movimento antirracista da faculdade, explicando e dando orientação.
"É injusto com ele", pensou Lídia ainda segurando o marido que agora tentava explicar algo de importante, enquanto sua mãe berrava insultos medíocres e ofensivos.
-Vão embora -disse ela baixinho como se expusesse uma ideia apenas a si mesma
-Como? -perguntou a mãe que havia entendido o que a filha tinha falado, no entanto não conseguia acreditar.
-Eu disse para vocês irem embora -gritou Lídia que agora já havia largado Ricardo e andava na direção dos pais.
-Anda! -gritava Lídia com lágrimas saindo dos olhos. -Vão! Nunca me ajudaram em nada mesmo! - os pais ainda permaneciam imóveis com uma expressão de horror nos rostos.
-Vão embora ou eu e o meu marido, vamos abrir um processo e uma denuncia por racismo. - ameaçou ela, agora com a voz ainda mais alta e olhando diretamente para a mãe.
-Por isso eu disse que ela deveria ter feito administração e não direito, Petúnia. -disse o pai se levantando com ódio nos olhos, e deixando o apartamento.
A mãe de Lídia, ficou parada por uns três minutos incrédula e logo depois saiu andando acompanhando o marido.
Depois que eles saíram, Lídia saiu correndo para abraçar Ricardo, que ficaram ali curtindo o momento por um longo período de tempo, sem se dar conta que era a primeira vez em vinte e seis anos que ela havia enfrentando os pais e escolhido Ricardo da mesma forma que ele a escolheu a cinco anos atrás.
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Relatos de uma quarentena.
NouvellesNessa quarentena, eu Gabriel, resolvi escrever um pouco, colocando meus sentimentos e frustrações. As histórias relatam fatos normais ou não tão normais do nosso cotidiano, espero que gostem!