Ato 3, Cena I [Em Veneza]

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Entram Solânio e Salarino.

Solânio – E então, quais são as novidades no Rialto?

Salarino – Ora, ainda correm por lá as notícias (e ninguém desmente) de que Antônio teve um navio de carga valiosíssima naufragado nos Mares Estreitos; nos bancos de areia de Goodwin, acho que é como chamam o local: um baixio muito perigoso, e fatal, onde estão enterradas as carcaças de muitos navios que eram coisa finória, segundo dizem. Isso se a minha Lady Boataria for confiável como uma mulher honesta em suas palavras.

Solânio – Pois minha vontade é que ela fosse tão mentirosa nesse assunto como a mulher que diz que masca gengibre ou faz os vizinhos acreditarem que está chorando a morte do terceiro marido. Mas é verdade, sem cair em prolixidades nem ficar rodeando o assunto com evasivas, que o nosso bom Antônio, o honesto Antônio... Ah, se pelo menos eu tivesse um título bom o suficiente para acompanhar-lhe o nome!

Salarino – Vamos lá, ponha um ponto final na frase.

Solânio – O que queres dizer com isso? Ora, eu estava terminando de dizer que ele perdeu um navio.

Salarino – Meu desejo é que suas perdas parem por aí.

Solânio – Deixe-me logo dizer "amém", para que nas minhas preces não se atravesse o diabo, pois que aí vem vindo ele, na forma de um judeu.

Entra Shylock.

Mas, então, Shylock, quais são as novas entre os mercadores?

Shylock – Você sabia, ninguém mais que você, ninguém melhor que você, sabia da fuga da minha filha.

Salarino – Com certeza; de minha parte, eu conheço o alfaiate que fabricou as asas que a fizeram voar para longe.

Solânio – E Shylock, de sua parte, sabia que a passarinha estava alada, e é da natureza delas todas abandonar o ninho.

Shylock – Ela está amaldiçoada por ter feito isso.

Salarino – Com certeza... se o diabo for o juiz da questão.

Shylock – Minha própria carne, meu próprio sangue, erguer-se num levante!

Solânio – Espere aí, velhinho, você que mais parece um morto-vivo! Nessa idade? Sua carne e sangue erguendo-se? Levantando?

Shylock – Estou dizendo que minha filha é minha carne e meu sangue.

Salarino – Tem mais diferença entre a sua carne e a dela que entre o azeviche e o marfim; mais diferença entre os sangues de vocês dois que entre um vinho aguado de garrafão e um vinho encorpado do Reno. Mas, diga-nos, você está sabendo se Antônio perdeu algum navio no mar?

Shylock – Pois esse é outra boa bisca: um falido, um mão-aberta que nem mesmo ousa mostrar a cara no Rialto, um mendigo que estava acostumado a aparecer todo janota na Bolsa de Mercadorias. Ele que dê uma olhada na promissória que assinou. Tinha o hábito de me xingar de usurário; ele que dê uma olhada na promissória que assinou. Tinha o hábito de emprestar dinheiro como uma cortesia cristã; ele que dê uma olhada na promissória que assinou.

Salarino – Ora, mas com certeza que, se ele tiver de pagar uma multa, você não vai lhe tirar a carne. De que adiantaria para você a carne dele?

Shylock – Posso usar de isca nas minhas pescarias. Se ela não alimentar nada mais, vai alimentar a minha vingança. Ele me deixou mal, e me impediu de fazer meio milhão, e ria das minhas perdas e zombava dos meus ganhos, menosprezava a minha nação, frustrava os meus negócios, esfriava minhas amizades, atiçava meus inimigos... e que motivo tinha ele para isso? Eu sou um judeu. Judeu não tem olhos? Judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, impulsos, sentimentos? Não se alimenta também de comida, não se machuca com as mesmas armas, não está sujeito às mesmas doenças, não se cura pelos mesmos métodos, não passa frio e não sente calor com o mesmo verão e o mesmo inverno que um cristão? Se vocês nos furam, não sangramos? Se nos fazem cócegas, não rimos? Se nos envenenam, não morremos? E, se vocês nos fazem mal, não devemos nos vingar? Se somos como vocês em todo o resto, vamos ser como vocês nisso. Se um judeu faz mal a um cristão, isso é recebido com humildade? Não, isso pede vingança. Se um cristão faz mal a um judeu, pelo exemplo cristão, qual deve ser a clemência? Ora, vingança. A baixeza que vocês me ensinam eu vou executar e, se não houver impedimentos, o aluno vai superar seus mestres.

Entra um Serviçal enviado por Antônio.

Serviçal – Cavalheiros, meu amo, Signor Antônio, está em casa e deseja falar com ambos os senhores.

Salarino – Estivemos para cima e para baixo procurando por ele.

Entra Tubal.

Solânio – Aí vem mais um da tribo. Um terceiro que chegasse não se poderia comparar a esses dois, a menos que o diabo em pessoa se tivesse convertido e fosse agora judeu.

Saem Salarino e Solânio com o serviçal.

Shylock – E então, Tubal, quais são as notícias de Gênova? Encontraste a minha filha?

Tubal – Seguidas vezes fui a lugares onde tinham ouvido falar dela, mas não consegui encontrá-la.

Shylock – Ora, mas então, então, então, então! Um diamante que se foi com ela me custou dois mil ducados em Frankfurt! A maldição nunca caiu sobre a nossa nação até agora, eu nunca senti essa maldição até agora. Dois mil ducados numa pedra, e outras joias mais, preciosas, preciosíssimas! Queria que minha filha estivesse morta aos meus pés, e as joias em suas orelhas; queria que ela estivesse dentro de um caixão aos meus pés, e os ducados junto, no esquife. Nenhuma notícia deles; por que isso? E nem mesmo sei quanto já se gastou nessa busca. Ora, tu, perda em cima de perda... o ladrão indo embora com tanto, e outro tanto para encontrar o ladrão, e nenhum resultado, nenhuma vingança, e também nenhum azar fatal para tirar dos meus ombros o peso que carregam, nenhum suspiro (só os da minha respiração) e nenhuma lágrima (só as que escorrem no meu rosto)!

Tubal – Mas sim, outros homens também têm azar. Antônio, segundo ouvi em Gênova...

Shylock – O quê, o quê, o quê? Azar, foi? Azar?

Tubal – ... está com um navio dos grandes naufragado; depois que saiu de Trípoli.

Shylock – Graças a Deus, graças a Deus! É verdade? É verdade?

Tubal – Eu falei com alguns dos marinheiros que escaparam do naufrágio.

Shylock – Eu te agradeço, meu bom Tubal. Boas notícias, boas notícias! Ha, ha, ouviu em Gênova!

Tubal – A sua filha gastou em Gênova, pelo que me disseram, em uma só noite, quatro vintenas de ducados.

Shylock – Agora cravaste um punhal em mim; nunca mais verei o meu ouro. Quatro vintenas de uma vez só! Quatro vintenas de ducados!

Tubal – Vieram diversos dos credores de Antônio junto comigo para Veneza que juram que ele não tem escolha, senão pedir a falência.

Shylock – Fico muito contente. Vou atormentar Antônio, vou torturar Antônio. Fico feliz com isso.

Tubal – Um deles me mostrou um anel que recebeu de sua filha em pagamento por um macaco.

Shylock – Que vergonha, ela fazer uma coisa dessas! Tu estás me torturando, Tubal: era a minha turquesa, que ganhei da minha Lia quando ainda era solteiro. Eu não me teria separado dela nem por todos os macacos do mundo.

Tubal – Mas é certo que Antônio está arruinado.

Shylock – Sim, isso é verdade, isso é bem verdade. Vai, Tubal, contrata em meu nome um guarda, combina com ele que daqui a uma quinzena Antônio deve ser preso. Terei o coração dele se ele tiver de pagar a multa. Estando ele longe de Veneza, posso negociar como eu bem entender. Vai, Tubal, e depois me encontra em nossa sinagoga. Vai, meu bom Tubal, e depois, na sinagoga, Tubal.

Saem.

O mercador de Veneza (1605)Onde histórias criam vida. Descubra agora