XXX - Em que se começa a ...

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... desconfiar que suplício estava reservado a Cornélio Van Baerle


A berlinda rodou todo o dia. Deixou Dordrecht à esquerda, atravessou Roterdão e chegou a Delft. Às cinco horas tinham andado vinte léguas.

Cornélio dirigia perguntas ao oficial, que lhe servia ao mesmo tempo de guarda e de companheiro; mas por mais circunspectas que fossem estas perguntas, teve a mágoa de as ver ficar sem resposta.

Lamentou por isso o não ter a seu lado aquele guarda complacente, que falava sem se fazer rogar e que sem dúvida lhe daria acerca da singularidade, que acompanhava essa sua terceira aventura, pormenores tão graciosos e explicações tão precisas como a respeito das duas primeiras.

Passaram a noite na berlinda. No dia seguinte de madrugada, Cornélio achou-se da banda de lá de Leyde, tendo o mar do norte à esquerda e o de Harlem à direita.

Três horas depois entrava em Harlem. O mancebo não sabia o que se passara em Harlem e nós deixá-lo-emos nesta ignorância até que os acontecimentos o venham esclarecer...

Não podemos contudo fazer o mesmo com o leitor, que tem o direito de ser informado de tudo, até antes do nosso herói.

Já vimos que Rosa e a tulipa, como duas irmãs e duas órfãs, tinham sido deixadas pelo príncipe Guilherme de Orange em casa do presidente Van Herysen.

Rosa não recebera notícia alguma do stathouder antes da noite imediata àquele dia em que o vira frente a frente; mas à tarde entrou em casa de Van Herysen um oficial, que vinha da parte de Sua Alteza convidá-la para que se apresentasse na casa da câmara, na qual, e no gabinete das deliberações, onde foi introduzida, achou o príncipe a escrever.

Estava sozinho e tinha aos pés um grande galgo de Frísia, que olhava para ele fito, como se quisesse conseguir o que a nenhum homem era dado fazer, isto é, ler no pensamento do dono.

Guilherme continuou ainda a escrever por um instante; depois, erguendo os olhos e vendo Rosa em pé junto à porta, disse-lhe, sem parar de escrever:

— Aproxime-se, menina.

Rosa deu alguns passos para a mesa.

— Monsenhor! — disse ela, parando.

— Está bem — replicou o príncipe. — Sente-se.

Rosa obedeceu, porque o príncipe olhava para ela. Apenas, porém, este volveu os olhos para o papel, afastou-se um pouco, toda envergonhada.

Entretanto o príncipe acabava a sua carta; e o galgo, que se chegara ao pé de Rosa, tinha-a cheirado e fazia-lhe festas.

— Ah! ah! — disse Guilherme ao cão — bem se vê que é uma patrícia; reconheceu-a.

Depois, voltando-se para Rosa e cravando nela um olhar perscrutador e disfarçado ao mesmo tempo, prosseguiu:

— Vamos lá, minha filha.

O príncipe tinha apenas vinte e três anos, Rosa dezoito ou vinte; e por isso teria andado melhor dizendo: «Minha irmã».

— Minha filha — disse ele pois, com esse tom singularmente impotente que gelava todos os que se lhe aproximavam — estamos sozinhos aqui e podemos conversar à nossa vontade.

Rosa começou a tremer toda, e no entanto a fisionomia do príncipe respirava só benevolência.

— Monsenhor — balbuciou ela.

— Seu pai está em Loevestein?

— Sim, monsenhor.

— E não gosta dele?

— Pelo menos não o estimo como uma filha deveria estimar seu pai.

— Isso é muito mal feito, minha filha, mas faz bem em não mentir ao seu príncipe.

Rosa baixou os olhos.

— E por que razão não estima o seu pai?

— Porque é mau.

— E de que modo se manifesta a sua maldade?

— Maltratando os presos.

— Todos?

— Todos.

— Mas não lhe leva a mal que maltrate particularmente algum?

— Meu pai maltrata particularmente o sr. Van Baerle, que...

— Que é seu amante.

Rosa deu um passo para trás.

— Que eu amo, monsenhor — respondeu ela, com altivez.

— Há muito tempo? — perguntou o príncipe.

— Desde o dia em que o vi.

— E viu-o...?

— No dia seguinte àquele em que foram tão horrorosamente assassinados o grande pensionário João e o seu irmão Cornélio.

O príncipe franziu os lábios, enrugou a testa e baixou as pálpebras a ponto de esconder por um instante os olhos. Passado, porém, um momento de silêncio, prosseguiu:

— Mas de que lhe serve amar um homem destinado a viver e a morrer preso?

— Servir-me-á, senhor, se ele viver e morrer na prisão, de ajudá-lo a viver e a morrer.

— E aceitará a posição de ser mulher de um preso?

— Seria a mais feliz e a mais orgulhosa das criaturas, se casasse com o sr. Van Baerle, mas...

— Mas o quê?

— Não me atrevo a dizê-lo, senhor.

— Bem vejo que no tom da sua voz há um sentimento de esperança; então que espera?

Rosa levantou os seus lindos olhos para Guilherme, os seus olhos límpidos e de uma inteligência tão penetrante, que foram esquadrinhar a clemência adormecida, no fundo daquele coração melancólico, num sono semelhante à morte.

— Ah! Percebo.

Rosa sorriu, pondo as mãos.

— Espera em mim, não é verdade? — disse o príncipe

— É verdade, senhor.

— Hum!

— O príncipe fechou a carta que acabava de escrever e chamou um dos seus oficiais.

— Sr. Van Deken — disse ele — leve esta carta a Loevestein; leia as ordens que aí dou ao governador e execute-as no que lhe disser respeito.

O oficial fez uma vénia e dali a pouco ouviu-se ressoar na abóbada sonora da casa o galope de um cavalo.

— Minha filha — prosseguiu o príncipe — domingo é a festa da tulipa, e domingo é depois de amanhã. Enfeite-se bem e torne-se bem linda com os quinhentos florins que aqui tem; pois quero que esse dia seja de grande festa para si.

— Como quer Vossa Alteza que eu me vista? — murmurou Rosa.

— Com o traje das noivas frísias — respondeu Guilherme — que lhe assentará às mil maravilhas.

A Tulipa Negra (1850)Onde histórias criam vida. Descubra agora