12 - DO OUTRO LADO DA PAREDE

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Quando se vive numa fila de casas, é interessante pensar-se no que está a ser feito e dito do outro lado da parede das divisões que habitamos. Sara gostava de se entreter imaginando o que escondia a parede que dividia a escola da casa do cavalheiro indiano. Sabia que a sala de aulas ficava ao lado do escritório do cavalheiro indiano e esperava que a parede fosse grossa o suficiente para que o barulho que as alunas por vezes faziam depois das lições não o incomodasse.

Certa vez, disse para Ermengarde:

– Tenho uma grande simpatia por ele. Não gostaria nada que o barulho o perturbasse. Adotei-o como meu amigo. É possível fazer-se isso com pessoas com as quais nunca falamos. Observamo-las, pensamos nelas, alegramo-nos por elas e compadecemo-nos delas, e às tantas tornamo-nos quase parentes. Fico bastante ansiosa quando por vezes vejo o médico ir visitá-lo duas vezes por dia.

– Eu tenho poucos parentes e fico muito contente por isso – afirmou Ermengarde, com um ar pensativo. – Não gosto daqueles que tenho. As minhas duas tias estão sempre a dizer: «Deus meu, Ermengarde! Estás muito gorda. Não devias comer doces.» E o meu tio passa o tempo a perguntar-me coisas como: «Quando é que Eduardo III subiu ao trono?» e «Quem é que morreu com uma indigestão de lampreias?»

Sara riu.

– As pessoas com as quais nunca falamos não nos podem fazer perguntas assim, e tenho a certeza de que o cavalheiro indiano não o faria, mesmo que fosse um familiar teu muito chegado. Gosto muito dele.

Simpatizara com a Família Grande porque todos tinham um ar feliz, mas simpatizara com o cavalheiro indiano porque ele parecia infeliz.

Era evidente que ele não recuperara ainda por completo da grave doença que o acometera. Na cozinha, onde, é claro, as criadas, por um qualquer expediente misterioso, sabiam de tudo, ninguém se cansava de discutir o caso. Na verdade, o cavalheiro não era indiano mas sim inglês, e vivera na Índia. As desventuras que por lá enfrentara haviam sido de tal ordem que toda a sua fortuna estivera em risco e ele mesmo se dera por arruinado e desonrado para todo o sempre. O choque fora tão grande que quase morrera devido a um esgotamento nervoso. Desde então, a sua saúde ficara comprometida, embora a sua sorte tivesse mudado e a sua riqueza lhe tivesse sido restituída. A causa dos seus problemas e infortúnios tinha sido umas minas.

– E minas de diamantes! Poupanças minhas nunca irão para minas, em especial de diamantes! – exclamou a cozinheira, com um olhar de relance para Sara. – Todos nós sabemos no que isso dá.

«Ele sentiu o mesmo que o meu papá. Ficou igualmente doente, mas não morreu», pensou Sara.

Deste modo, no seu coração, sentiu-se ainda mais cativada pelo cavalheiro indiano. Quando a mandavam fazer recados depois de escurecer, costumava ficar satisfeita, pois havia sempre a hipótese de as cortinas da casa ao lado não terem ainda sido fechadas e ela conseguir avistar o seu amigo adotado numa das confortáveis divisões. Quando não havia ninguém por perto, parava e, segurando-se ao gradeamento de ferro, desejava-lhe as boas-noites como se ele a pudesse escutar.

«Talvez consiga sentir, já que não pode ouvir-me», imaginava ela. «Quem sabe se os pensamentos bondosos não chegam às pessoas, de alguma forma, mesmo através de janelas e portas e paredes. Talvez o cavalheiro indiano se sinta um pouco melhor, mais reconfortado, sem perceber bem porquê, quando eu estou aqui de pé, ao frio, a desejar que fique bom e volte a ser feliz. Lamento tanto o que lhe aconteceu», sussurrava ela na sua cabeça. «Quem dera que tivesse uma ''senhorinha'' que o mimasse como eu costumava mimar o meu papá quando ele tinha uma dor de cabeça. Gostaria muito de ser a sua ''senhorinha'', meu pobre amigo! Boa noite, boa noite. Deus o abençoe!»

Afastava-se, sentindo-se ela mesma um pouco melhor e mais reconfortada. A sua compaixão era tão forte, que quase se acreditaria que chegaria de alguma maneira até ele, sentado sozinho no seu cadeirão frente à lareira, quase sempre de roupão comprido e quase sempre com a testa pousada nas mãos, ao mesmo tempo que contemplava desesperadamente as chamas. Para Sara, ele era um homem cujas inquietações lhe perturbavam ainda o espírito, não uma pessoa cujas provações pertenciam já ao passado.

A Princesinha (1905)Onde histórias criam vida. Descubra agora