Capítulo 1 - Love Story

135 13 0
                                    


Quase todo aspirante a escritor que se preze já leu e já desejou ser Henry Miller. Para quem tem a cabeça de cima cheia de hormônios, a de baixo cheia de idéias, e o quarto entulhado de literatura, nada mais atraente do que aquela vida intelectovagabunda com mil e um personagens fascinantes e uma mulher pirada para amar. To fuck, diria Henry... Bem, a questão é que tive meu mais forte momento milleriano assim que deixei Brasília e voltei a São Paulo sem diploma, sem lenço e sem documento.

Eu e meu ex-sócio, o fotógrafo Dante Cruz, como estávamos sempre duros — a grana ia toda para nosso estúdio da Vila Olympia — costumávamos freqüentar a Boca do Lixo e os arredores da Praça Roosevelt, centrão paulistano, onde tudo é mais barato, mais excitante, mais concreto e, digamos, mais Role Playing Game. Foi por ali, em frente ao Love Story, vulgo Quatro e Meia (a hora em que o bicho começa a pegar) que, em 1997 ou 1998, conheci Duda. Para quem não sabe, o Love Story é aquela boate onde toda a fauna noturna se encontra: executivos japoneses em viagem de negócios, jornalistas sabichões, prostitutas a trabalho ou não, ricos do interior aventurando-se na megalópole, clubbers experimentando a noite, cafetões "de olho", traficantes com tudo em cima, playboys à caça, modelos baladeiras, estudantes universitários, excluídos do Café Photo, enfim, artistas e pseudos, tarados e mafiosos, vampiros e deusas. Tudo evidentemente temperado pelo ar apocalíptico que só São Paulo sabe ter. Um local onde se deve simplesmente dançar, sem planejar conquistas românticas, afinal, ou as mulheres são muito donas de si ou, pelo contrário, já tem dono, e daqueles bem barra-pesada.

Pois é, eu e o Dante já havíamos circulado — com a ajuda de um "conhecido" dos mais suspeitos e super integrado na área — por diversos night clubs (alguns com mulheres nuas sobre as mesas a esfregar a bunda nos clientes, tipo Duke Nuken 3D) e, no final das contas, o negócio era mesmo o Love Story, que é baixaria, mas baixaria estilizada, bacana. E, conforme dizia, lá estava a Duda: linda, gatinha, "gotozinha" e, puts, alone. ¿Esperando alguém? Bom, seria necessário indagar-lhe, mas um tímido escorpiano não sabe por onde começar, sabe apenas, depois de um contato inicial, prosseguir e apertar, parlare e apertar, apertar bastante. ("Quem muito abraça, pouco aperta", dice mi madre.) Comentei com o Dante: "Meu, olha essa figura: meu tipo, meu tamanho, gatíssima." É óbvio que eu estava cometendo pela milésima vez o velho grande erro: estava dizendo ao meu amigo mais malandro, mais forte, mais alto e, o pior, de olhos verdes, que havia um alvo às duas horas, velocidade aproximada de zero nós.

"Vai lá falar com ela", disse ele.

"Agora?!"

"É, agora, ¿qual o problema?"

"Não, cara, não tenho a manha, ¿saca?"

"Afirmativo", retrucou ele, ou talvez tenha dito "Roger that", sei lá. A questão é que, mal olhei para o outro lado, quando me voltei para novamente falar com ele, o cara já estava lá de papo com a figura. Fiquei pê da vida: ele iria furar a fila de novo! Em que tenebrosa hora eu decidira dividir casa e estúdio com esse cara... Assim que ela riu de um gracejo qualquer emitido pelo sacripanta — dentes muito brancos, sorriso delicioso — virei novamente o rosto para o outro lado, fulo de raiva. Comecei a maquinar pensamentos terríveis, bambu sob as unhas, prego sob o pneu, areia dentro da Nikon, bagulho na privada, etc., aquele gênero de magia negra que se faz mentalmente contra um traidor. Quando eu já estava assistindo ao funeral dele em minha tela interior, me tocaram o ombro. Virei-me: era ela!

"¿É verdade que você é escritor?", disparou. Acho que fiquei roxo. Embora eu já tivesse escrito meu primeiro livro, ainda não o havia publicado, e isso me deixava morto de vergonha de assumir a pecha de escritor.

"Bom, na verdade só escrevi um livro..."

"Seu amigo me disse que você escreve super bem."

Carácoles! Eu xingando o cara e ele cantando a garota em meu nome!

A Bacante da Boca do LixoOnde histórias criam vida. Descubra agora