Capítulo 2 - Teatro Oficina

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Durante a semana seguinte, não conseguimos nos encontrar. Não houve tempo. Tinha meu trabalho intelectual no estúdio — pintar paredes, levar filmes ao laboratório, digitar orçamentos, virar noites — e acabamos nos falando apenas ao telefone. Conversamos em três ou quatro ocasiões. Em cada uma delas, ficávamos no mínimo uma prazeirosa hora falando e rindo sabe lá Deus de quê. Ela era inteligente e tinha ótimo senso de humor. Era ariana, um dos meus fracos. Em nosso último contato, eu a convidei para sair no final de semana seguinte. Uma rave, talvez. Ela disse que só poderia sair se o tal fulano não aparecesse. Ficamos de nos falar e confirmar. E o fulano quebra-ossos-da-mão apareceu. Não saímos. Mas saí com o Dante e a Luar, namorada dele. Fomos ao Teatro Oficina assistir à montagem de As Bacantes, de Eurípedes, por obra de Zé Celso Martinez Corrêa, o "Guru do Cu". Era justamente uma peça que li e reli trocentas vezes — tendo inclusive escrito a partir dela um conto-paródia, Penteu, o Pentelho — graças ao professor Marcos Motta, atualmente coordenador do curso de artes cênicas da UnB. Um cara do bem.

Para quem não conhece, o Teatro Oficina é uma estrutura das mais curiosas. Sua forma não tem nada a ver com o tradicional "palco italiano". É antes como uma régua: estreito e compriiiiido. E o louco é que o palco acompanha toda a extensão desse compriiiiido. E em vários níveis, com atores sobre andaimes e mezaninos, dando um efeito caleidoscópico à coisa toda. Logo, a cena a que assistimos não é "a" cena, são "as" cenas. Sem falar que é possível, também para a platéia, ficar mudando de posição no correr da peça, indo para o outro lado do longo palco, para o mezanino e assim por diante. Quando não há diálogos, você se divide entre mil pontos de vista, entre as várias situações apresentadas. Logo, é possível assistir a uma mesma peça dez vezes e guardar dez peças diferentes na memória.

Bem, como eu dizia, fomos eu, o Dante e a Luar, uma figura linda, engraçada e "lunártica". Na entrada fomos recebidos por taças de vinho, sempre abastecidas, o que já me causou ótima impressão, afinal, estávamos no encalço de Dionísio, de Baco. Sentamo-nos primeiro na platéia inferior, ao lado direito de quem entra. O ambiente, claro, era de festa, de bacanal. Eurípedes, dentre os antigos dramaturgos gregos o mais jovem, talvez aprovasse tudo o que veio a seguir. No fundo, As Bacantes é simplesmente a peça em que ele, ao testemunhar a decadência de Atenas — que já vivia sua fase secular e descrente —, expressa seu desgosto. Eurípedes, feito uma Hilda Hilst, retirou-se para a Macedônia, cu-de-judas da época, onde viveu recluso e criou essa tragédia sobre o cético e pentelho Penteu, rei de Tebas, o qual se burla daquele jovem que diz ser Dionísio e o manda prender. O jovem, que era de fato o deus, após mil e um avisos, que sempre precedem uma tragédia, não apenas põe a prisão abaixo como enlouquece todas a mulheres, permitindo que a própria mãe de Penteu o devore, com outras mulheres, feito um bando de animais selvagens. É, enfim, uma peça que, caso tivesse sido lida por Anás, Caifás e Pilatos, teria nos poupado de muitas amarguras.

E o Penteu do Zé Celso era um clone do Collor de Melo, e Dionísio, uma drag queen de plataformas e roupa-pele de strass e paetês que tudo cobria exceto o pau, que se expunha por uma grande fenda. Coisas do Guru do Cu. Talvez por eu já estar embriagado — minha conjunção Júpiter-Netuno me faz extremamente sensível a qualquer substância — nada me desagradou. Mas, pelas perguntas da Luar e do Dante, percebi que só quem havia lido a peça conseguia entender o que afinal se passava no meio de toda aquela agitação. Bem, talvez porque já estivessem também tão bêbados que mal conseguiam se equilibrar sobre o fio condutor da história. Não sei ao certo, eu precisaria assistir a tudo de novo com o cérebro intacto para emitir um juízo definitivo. Mas a questão é que, entendendo ou não o espírito da obra — que para mim é a "tragédia da descrença" — todos captavam ao menos o espírito de Dionísio, o patrono do teatro. A iluminação era excelente, assim como os efeitos de som, os figurinos, os atores e, claro, as bacantes eram umas garotas lindas. (Não sei se todas, como já disse o autor deste relato estava breaco.) Mas, enfim, tudo correspondia.

A Bacante da Boca do LixoOnde histórias criam vida. Descubra agora