Preto no Branco

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  -Benicio, eu ainda acho que você deveria descansar. Nosso vôo foi tão longo e amanhã você tem escola. Por que não deixa para ver a Bianca depois? Aposto que ela vai se surpreender da mesma forma, hoje ou amanhã, no fim voltamos uma semana mais cedo - olhei rapidamente nos olhos de minha mãe  enquanto abria outra das inúmeras malas em busca do presente que trouxe pra Bruna, minha namorada.

Há exatos 5 meses, eu a pedi em namoro durante um piquenique no Jardim Botânico, aqui em São Paulo, e foi a melhor decisão que eu pude tomar. Nós somos amigos desde sempre, estudamos nas mesmas escola, mesmas turmas, e é até estranho eu ter demorado tanto pra perceber que sentia algo além de uma amizade. Depois de ter o coração partido tantas vezes, estar com a Bianca é algo revigorante, como um tipo de pomada cicatrizante que vai juntando todos os pedaços de mim.

  -Você sabe que eu insisti em voltar antes pra conseguir comemorar o nosso aniversário de namoro, qual seria o ponto de voltar mais cedo se eu deixasse pra ver ela amanhã? Eu sei que você morre de ciúmes mãezinha, mas você já me teve, exclusivamente, por um mês inteiro. Além disso, eu tô morrendo de saudades da Bianca, quero só ver a reação dela com o presente.

  -É óbvio que ela vai gostar Benício, eu mesmo colocaria um fim nesse relacionamento se ela não gostasse. E digo mais, aniversário de namoro se comemora a cada ano, e não de seis em seis meses. A garota é perfeita de mais, não me cheira nadinha bem, você já sabe. - Revirei os olhos com aquele discurso. Eloá Mebaille Karantes era uma mulher impossível de se agradar, uma namorada falava demais, a outra de menos, ou então não era de boa família, agora Bianca não serve porque preenche todos os requisitos dela. Eu desisti de considerar qualquer opinião da minha mãe há algum tempo, agora eu só sorrio e mudo de assusto. Descobri ser a melhor saída pra não entrar em discussões inúteis.

  -Deixe a Bianca um pouco de lado, mãe. Já avisou meu pai que chegamos? Eu acho que ele não teria nenhuma reunião hoje, se não me engano.

  -Seu pai com certeza já deve estar ciente, Constantino tem olhos e ouvidos em todos os lugares, ainda mais que se trata do garoto de ouro dele. Acredite, o maior orgulho dele foi... - Já sabia qual seria o discurso que viria, era sempre a mesma história de como eu era o maior orgulho do meu pai, que não queria filhos mas precisava de um herdeiro e conseguiu um logo de primeira. Foi um alívio encontrar o embrulho de Bianca na mala, bem a tempo de poupar minhas orelhas.

  -Achei! Seria um prazer ouvir essa história pela milionésima vez, mas vamos ter que deixar pra próxima, prometo que amanhã eu chego a tempo para o café da tarde. - Peguei os embrulhos e fui me despedir dela com o beijo no rosto, antes de ir para o carro.

  -Nem me dou mais ao trabalho de acreditar em você, Benício, poupo minhas ilusões para outros assuntos, como você encontrar uma namorada decente. Fique avisado que te quero em casa antes da meia noite, Luiz vai ficar te esperando e é bom você não desaparecer de novo. -

  Dei risada com a lembrança da última vez que eu saí, talvez eu tenha traumatizado um pouco minha mãe, mas não tenho culpa se bebi um pouco de mais e a festa teve um after na casa de um amigo, não foi nada divertido chegar em casa e ver carros de polícia na entrada com investigadores recolhendo depoimentos sobre meu suposto sumiço. Pelo menos não na hora.

  Luiz já estava com o carro pronto na entrada de casa. Infelizmente ainda dependo do motorista pra andar por aí, mas daqui algumas semanas já vou começar meu processo de habilitação. Passamos num dos restaurantes favoritos de Bianca pra pegar nosso jantar e quando cheguei na casa dela tive a maravilhosa notícia de que o pai dela não estava e a mãe já tinha se recolhido, ou seja, sem interrupções não gratas. Gosto dos meus sogros, mas todas as minhas tentativas de jantar romântico terminavam num jantar em família. Mas não hoje. A empregada da casa me ajuda a organizar todas as coisas, a comida, as velas, tudo fica perfeito pra quando Bianca chegar.

Estou sentado no sofá que dá visão pra porta com o buquê em mãos quando escuto o barulho do carro chegando. Me levanto pronto pra surpreende-la, mas quando a porta abriu, estanquei no lugar. A cena que se desenrolou na minha frente parecia um filme, Bianca se agarrando com um cara, tão distraída que nem percebeu as velas, ou a música de fundo, ou a mim. Eles se espremiam contra o corrimão da grande escada central enquanto eu andava lentamente em direção ao interruptor. Acendi as luzes do cômodo e então desejei mais do que tudo que um buraco se abrisse na minha frente pra poder sumir dali. Bianca me encarava ofegante, os olhos arregalados, a boca toda manchada, mas o pior era que ao lado dela, Henrique, meu melhor amigo, se encontrava na mesma condição.

  -Beni, eu... nós.... eu posso explicar amor, não é o que vc tá pensando. -

  Eu só conseguia encarar os dois, minha boca abria mas não saia nada, eu não conseguia raciocinar nada.

  -Cara, não fica assim... foi... foi um acidente.
  -Com certeza, Henrique. A Bianca acidentalmente entrou no seu carro e depois acidentalmente enfiou a língua na sua boca. É claro que sim. Bem, pelo visto eu estou sobrando aqui, acredito que seja a minha deixa para ir embora. O jantar está servido na mesa, aproveitem antes que esfrie.

  Sai daquela casa com os dois gritando meu nome. O meu estado devia estar péssimo porque Luiz, assim que me viu, desencostou do carro e já assumiu o lugar de motorista, o que nunca acontece sem que conversemos um pouco. Sento no banco de passageiro automaticamente, sem noção real do que estou fazendo.
  Olho pra porta da casa de Bianca e lá estão os dois, as duas pessoas em que eu mais confio, por quem eu colocaria a mão no fogo. Isso foi antes. O buquê na minha mão praticamente zomba da minha cara, que babaca, não é possível que eu realmente achei que tivesse encontrado alguma felicidade. Grande piada.

   -Vamos para casa, senhor Beni? - Olhei pra Luiz que me olhava em busca de alguma resposta, tanto pra sua pergunta dita como para a não dita também, o que teria acontecido dentro da casa.

  Sabia que se voltasse pra casa agora, minha mãe me afundaria em perguntas intermináveis e com certeza viria com o famoso discurso " eu te avisei". Definitivamente, não estava com paciência pra isso. Olhei para o semáforo que brihava vermelho e sem pensar muito abri porta e desci do carro.

  Eu ouvi Luiz me chamando, mas eu precisa ficar sozinho, precisava digerir tudo aquilo. Olhei ao redor e demorei um pouco pra me localizar. Ouvi barulhos da minha barriga que me lembraram que não tinha comido nada depois do almoço. Comecei a caminhar procurando algum lugar pra comer e não pude conter meu alívio ao ver um carrinho de cachorro quente, há tempos não comia um prensado.

  Me aproximei e pedi o mais completo. Com meu lanche em mãos, rumei pra um dos bancos que tinha ali na praça e me sentei, olhando pro muro de uma casa enquanto comia. Senti uma presença se aproximando, quando olhei vi que era um morador de rua pedindo algo pra comer. Gritei pro dono do carrinho preparar um cachorrão para o homem, que se sentou ao meu lado enquanto esperava.

   -O que aconteceu pra você estar com essa cara, garoto? A comida não tá boa? - Dei uma risada seca.
   - Antes fosse isso, seria mais fácil de resolver. Essa cara reflete o meu esforço pra me acostumar com o peso dos chifres que eu levei.
  - Não diga, como alguém  pode cornear um rapaz bonitinho que nem você?
  - Essa é a pergunta de um milhão. Também gostaria de saber. Mas eu devia ter previsto, não é meu primeiro, parece uma sina.
  - Eu não conheço essa sina, mas você não devia se deixar abater tanto. Você é bom demais pra ela, talvez seja a hora de você assumir um outro papel,  não mais como a vítima, a caça mas sim de caçador.
  - E como sugere que eu faça isso? Não é como se fosse possível aprender a partir corações.
  - Tudo é possível de se aprender, só requer certa resiliência. 
  - Se é tão fácil assim aprender alguma coisa, por quê, então, você não aprendeu uma forma de sair das ruas? - Ele sorriu pra mim com um semblante de pena, talvez fosse mesmo, olhe a que ponto chegamos.
  - Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia, garoto. Nem tudo é preto no branco, a vida é recheada de nuances cinzas, que particularmente são as mais complexas e bonitas  Você vai ver e aprender isso com o tempo, há coisas que a consciência só alcança com o avanço da idade, como uma espécie de pedágio.
  
  Olhei surpreso para o homem, um morador de rua que me diz não saber quem é sina e logo em seguida cita Shakespeare, me mandando aprender a partir corações. Talvez ele estivesse certo, a vida pode não ser preto no branco, mas agora esse preto é tudo que eu consigo ver e é ele que me faz considerar a ideia um pouco absurda de partir corações.
  

How To Be A HeartbreakerOnde histórias criam vida. Descubra agora