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A primeira lágrima desliza pelo rosto dele, como uma única pérola, silenciosa. Quase imperceptível, como se ele estivesse fazendo força para não deixá-la rolar.

— Por favor... não fale do Shorter. Por enquanto.

Ash havia acabado de acordar de um pesadelo, assim como em várias outras vezes, mas eu sabia que esse em especial era pior. Ele seca a lágrima com a própria mão, mas eu não consigo imaginar nem um décimo da dor que ele sente nesse momento. Era impossível compará-la com a minha – doía em mim sim, mas de outra forma. Não era eu que tinha nas mãos a sensação de ter apertado o gatilho. Não era eu que tinha tirado a vida de alguém que amava.

Tento afastar aquilo da minha cabeça, mas é impossível. Os cortes em minha pele ainda ardem. Meus ouvidos ainda doem com o estrondo do disparo certeiro feito por Ash.

Meu coração ainda dói por ver Shorter morrer em meu braços.

Então eu não digo nada. Ao invés disso pego o algodão e o antisséptico, começo a cuidar dos cortes que ele tem nos braços, cobertos por cicatrizes finas, de outros tempos, tão claras quanto sua pele. E também quero parar de pensar no que vai acontecer daqui pra frente, mas eu não consigo. Angústia, tristeza, medo, tudo parece pairar sobre mim como trovoadas em uma tempestade. Mesmo que eu olhe para o céu, não consigo ver sequer um tom de azul. E por mais que estejamos em um lugar aparentemente seguro agora, não consigo parar de me sobressaltar toda vez que ouço algum barulho lá fora.

O nervosismo é tanto que eu deixo metade dos materiais de primeiros socorros caírem quando me sento de pernas cruzadas no chão.

— Ninguém vai nos achar aqui, Eiji.

Ash me observa como se eu tivesse acabado de fazer algo idiota, mas eu ainda estou claramente assustado. O que eu não posso confessar é que ainda consigo ouvi-los com nitidez. Parece que aquele som pungente nunca deixa de ecoar em meus ouvidos. Os tiros. O som do projétil alcançando seu alvo. O tilintar de facas e canivetes.

A dor que eles causam quando rasgam a minha pele.

Todo aquele sangue formando poças pelo chão.

— Está doendo? — eu murmuro quando o algodão toca a ferida e ele se encolhe, de súbito. — Meus cortes foram insuportáveis de sentir quando entrei na banheira também, e você tem bem mais do que eu.

Pelo menos uma dezena de fissuras vermelhas podiam ser vistas na pele de porcelana de Ash, mas acredito que ele tenha se acostumado a isso. Quantas vezes você teria que sentir um tiro de raspão até não sentir absolutamente nada?

Eu ainda sentia tudo. Demais.

Ash balança a cabeça negativamente, apontando para um objeto na cômoda ao lado do abajur.

— Max deixou aquela garrafa de whisky, sabia? Você deveria tentar, ajuda a amenizar a dor.

Existe algo no jeito que ele fala comigo às vezes, como se eu fosse mais novo e inexperiente, como se eu precisasse de um eterno cuidado. Não é difícil perceber que o mundo que Ash havia me inserido era completamente diferente do que eu estava acostumado. No Japão era raro encontrar lugares abandonados como aquele, com suas paredes com tijolos aparentes e pichações, suas janelas trincadas. Não se via armas nem ao menos com policiais. Gangues eram algo reservado às periferias, não os grandes centros, mesmo assim escassas.

Eu havia surgido de repente na vida de Ash para mudar completamente o modo que eu via o mundo. Tinha saído da minha bolha para cair de cabeça em algo perigoso, desordenado. Mas estar ao lado dele era tentador, como se eu pudesse ver este novo mundo através dos olhos de outra pessoa. E eu era uma nova pessoa, porém aprisionado nas amarras de não ter sido criado naquele ambiente a ponto de saber sobreviver nele sozinho.

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