Naquela tarde | Capítulo Três

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Madrid, Verão de 1936

Eram três da tarde, e o calor que se fazia sentir nas ruas da vila El Escorial era esmagador. Mayer conseguia distinguir as gotas de suor que lhe escorriam da testa, enquanto permanecia agachado atrás de uma trincheira. Ao seu lado, Liora também se encontrava na mesma posição, ao mesmo tempo que segurava a câmara entre as mãos. Mayer notou que os braços dela tremiam ligeiramente ao pegar no objeto, e colocou-lhe a mão sobre a perna, captando-lhe a atenção.

- Liora, estás bem?

A sua esposa olhou-o e esboçou um sorriso. Contudo, Mayer já a conhecia demasiado bem para saber que, por detrás daquele gesto, ela escondia o verdadeiro medo e temor que tinha pela sua vida. Ele queria dizer-lhe que também se sentia assim. Queria dizer-lhe que, naquele momento, ao ouvir os disparos que rasgavam o ar e as bombas que rebentavam a poucos metros de distância deles, também ele se sentia aterrorizado.

Porém, Mayer sabia que isso não iria adiantar de nada. Tanto ele como Liora tinham tomado aquela decisão em conjunto e, logo a seguir ao seu casamento, aceitaram deixar tudo em Paris e partir para Madrid para cumprirem com o que acreditavam: mostrar ao mundo aquilo que, só quem estava no campo de guerra, conseguia vivenciar.

Mas ninguém os podia ter preparado para os horrores que iriam experienciar, para a quantidade de mortes que iriam testemunhar, ou para a quantidade de famílias que iriam ser destruídas mesmo diante dos seus olhos.

Ele e Liora tinham ficado sob a proteção dos Republicanos, aqueles que eram defensores da existência de um regime democrático, apoiada por partidos comunistas e socialistas. Contra eles, estavam os opositores nacionalistas denominados de"Rojos", ou "fascistas nojentos", como Liora lhes gostava de chamar.

Uma bomba rebentou a metros donde se encontravam e Mayer sentiu o chão debaixo dos seus pés tremer, protegendo instintivamente a cabeça com os braços. Olhou para Liora e sentiu um alivio percorrer-lhe o corpo ao ver que ela se encontrava bem.

O seu coração disparou a um ritmo desenfreado no instante em que se virou e se levantou ligeiramente, ao mesmo tempo que empunhava a câmara para fotografar os soldados da oposição que avançavam periodicamente de trincheira em trincheira, contornando os inúmeros corpos inanimados no chão. Um tiro disparado na sua direção fez com que Mayer se tivesse de baixar bruscamente. Voltou a recostar-se contra a superfície áspera da trincheira, e não conseguiu evitar um suspiro de frustração.

- Não estamos a chegar perto o suficiente. As fotos não estão a ficar boas o suficiente! - disse, limpando uma gota de suor que pendia debaixo do queixo.

Liora virou-se para ele e agarrou na sua mão, apertando-a ao de leve. Mayer começou a sentir o ritmo do seu coração a abrandar um pouco mais.

- Eu sei, meu amor, mas temos de dar o nosso melhor! - respondeu-lhe, com uma voz que se ia perdendo no meio do som dos disparos.

Os olhos de Liora começaram a percorrer o campo à sua volta, tais amêndoas escurecidas pelo horror daquilo que viam. Foi então que um brilho se instalou no seu olhar, aquele brilho perigoso e implacável que deixava Mayer sempre numa pilha de nervos.

- Ali May, olha! Aquela trincheira está livre e assim conseguimos ficar mais perto! - disse-lhe, praticamente a gritar, como forma de se fazer ouvir por cima dos disparos e dos berros ensurdecedores.

Mayer sentiu um aperto no peito. Lá estava ela outra vez, a pensar com o coração e não com a cabeça. Ele já se tinha habituado a essa característica de Liora, porém, no meio de uma guerra agir dessa forma podia custar-lhe a vida.

Agarrou-lhe o braço com força, obrigando-a a encara-lo.

- Nem penses Liora, é demasiado perigoso!

Para sua surpresa, Liora inclinou-se e beijou-o. Sentiu o áspero dos seus lábios e o familiar sabor a terra que aquele ambiente lhes proporcionava ao mesmo tempo que retribuía o gesto, acariciando-lhe o rosto com a mão que não sustinha a câmara.

De seguida, Liora desprendeu-se dele com uma rapidez que o deixou sem reação. Ainda esticou o braço para a alcançar mas já era tarde demais, ela já corria até à trincheira livre, enquanto os soldados republicanos lhe davam cobertura disparando sem cessar, e o ar à sua volta se enchia de um intenso cheiro a pólvora.

E foi então que o pior que podia ter acontecido, aconteceu. Um tiro vindo sabe-se lá de onde alojou-se no meio da testa de Liora, esta que momentos depois caiu inanimada no chão. Toda a essência que ela alguma vez fora tinha abandonado o seu corpo, não restando quaisquer vestígios da mulher que ele tanto amava. Agora, era só mais um corpo morto caído no chão, no meio de tantos outros.

Um grito grotesco formou-se no fundo da garganta de Mayer. Ainda tentou levantar-se para ir ter com o corpo da esposa, mas o soldado ao seu lado agarrou-lhe a camisola com força, impedindo-o de se mexer.

- Ela está morta Sr. Richard. Já não há nada a fazer. Não vale a pena perder a sua vida também. Lamento muito. - disse-lhe o homem num francês meio atrapalhado, mas com uma voz que transmitia um pesar sincero.

Mayer deixou-se cair de joelhos derrotado, e abraçou o próprio corpo ao mesmo tempo que o balançava para trás e para a frente. Sentiu uma lágrima a cair, e outra a seguir a essa, até que rebentou num choro compulsivo e incontrolável, enquanto visualizava o rosto belo de Liora por detrás das pálpebras cerradas. Mesmo no meio dos sons dos disparos e dos gritos de dor que enchiam o ar à sua volta, Mayer não conseguia pensar em mais nada a não ser que tinha perdido o bem mais precioso da sua vida, que tinha perdido a sua Liora, que tinha perdido a sua "Luz".

998 palavras

Fotógrafo de Guerra  ✔Onde histórias criam vida. Descubra agora