Naquela noite | Capítulo Quatro

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Paris, Outono de 1937

O dia já começava a chegar ao fim quando Mayer despertou com o som de alguém a bater à porta. Tinha acabado por adormecer no cadeirão da sala, enquanto lia um livro traduzido de Florbela Espanca, autora favorita de Liora. Olhou para o lado e pegou com descontentamento no copo de whiskey vazio. Quando é que ele se tinha habituado a acabar as bebidas assim tão rápido? Deixou-se afundar ainda mais no cadeirão, observando os cubos de gelo quase totalmente derretidos a tilintarem contra o vidro do copo.

O som de alguém a bater à porta, agora com uma insistência crescente, voltou a ressoar pela casa. Mayer despertou do seu devaneio e levantou-se com dificuldade. Sentia todo o seu corpo dorido e mal se colocou de pé, tudo à sua volta começou a rodar.

Dirigiu-se a cambalear até à porta e abriu-a com relutância. Um homem de fato castanho escuro, com um saco a tiracolo e uma boina na cabeça sorriu-lhe, enquanto lhe estendia uma carta suspensa na mão.

- Alan, como estás? - disse, esfregando os olhos que lhe pesavam.

- Mayer, chegou uma carta para ti. És a minha última entrega do dia de hoje! - disse-lhe o homem que, tal como ele, ainda se encontrava na casa dos vintes anos - Deixei-a para o fim porque queria ver como te estavas a aguentar.

Mayer recostou-se à ombreira da porta para não se desequilibrar. Alan, à semelhança dele e de Liora, era judeu e tinha fugido da Alemanha para França com o objetivo de escapar aos nazis. Também sob a utilização de um nome diferente, Alan começou a trabalhar como carteiro na cidade de Paris e, quando se deram conta dessa coincidência, Mayer e Liora acabaram por criar um laço forte de amizade com ele.

Depois de um longo momento em silêncio perdido nos seus pensamentos, olhou finalmente para Alan, ignorando o ar preocupado que este lhe lançava.

- Estou bem Al, não te preocupes - respondeu, pegando na carta que o amigo lhe estendia.

Depois de acenar a Alan como forma de agradecimento, preparou-se para voltar a entrar dentro de casa, contudo, o tom nostálgico da voz do amigo deteve-o no seu caminho.

- Sinto muito a falta dela, sabes? Ela era sempre tão corajosa...

Mayer sentiu que ia vomitar, e segurou-se ainda com mais força à maçaneta da porta para evitar que as pernas lhe falhassem.

- Suponho que sim... - respondeu, fechando a porta atrás de si, deixando Alan a olhá-lo incrédulo.

Novamente cambaleante, voltou a entrar na sala e atirou-se para o cadeirão. Abriu a carta com uma curiosidade crescente e começou a percorrer os olhos pela letra escrita à máquina. O seu coração começou a disparar num ritmo desenfreado à medida que ia acabando a leitura, e se ia apercebendo do que aquela mensagem significava.

Nesse instante, sentiu-se transportado novamente para o horroroso dia em que Liora morreu. Depois de ter chorado a morte da sua esposa durante uns largos minutos, com uma força que Mayer pensava não possuir, voltou a pegar na sua câmara e conseguiu fotografar o momento exato em que um soldado republicano era alvejado. Agora, aquela carta dizia-lhe que essa mesma fotografia tirada num momento puro de desespero e de dor, iria ser publicada na prestigiada revista "The Times".

Sentiu as mãos tremerem e deixou cair o pedaço de papel no chão. Ele devia sentir-se feliz, orgulhoso com aquilo que tinha conseguido alcançar, mas em vez disso, uma raiva crescia-lhe dentro do peito. Do que é que valia tudo aquilo se Liora não estava ali para partilhar aquele momento com ele?

Levantou-se com brusquidão, pegando no livro de Florbela Espanca que tinha deixado pousado na mesa redonda, ao lado do cadeirão. Para seu espanto, uma fotografia soltou-se entre as páginas do livro e foi cair mesmo aos seus pés. Pegou-a agachando-se com dificuldade, tentando não cair ao ver uma vez mais, tudo à sua volta andar à roda.

Gelou quando analisou a imagem que tinha entre mãos. Era a fotografia que Mayer tinha tirado a Liora no dia em que se conheceram. A pouca força que ainda lhe restava para se manter em pé abandonou-o nesse momento, e deixou-se cair de joelhos no chão, ainda segurando naquela imagem como se a sua vida dependesse disso.

Percorreu com as pontas dos dedos a imagem de Liora inclinada enquanto fotografava o canteiro de flores. Quase que conseguia sentir o sedoso do seu cabelo ou o macio da sua pele morena só de olhar para aquela fotografia. Lembrou-se do quanto a tinha achado linda nesse dia, do quanto a tinha amado no tempo que se seguiu e, por fim, do quanto sentia a sua falta nesse mesmo instante.

Lágrimas começaram a formar-se nos seus olhos, turvando-lhe a visão e molhando a imagem ainda segura nas suas mãos. Sim, ele podia conseguir que muitas fotografias que tirasse fossem boas o suficiente para aparecerem no "The Times", porém, nada disso conseguia compensar o buraco que se tinha aberto no seu peito. Nada podia voltar a colocar Liora nos seus braços, nem trazer de volta o seu aroma natural a rosmaninho.

Mas, mesmo assim, naquele instante em que olhava para aquela imagem, sentiu que tinha conseguido recuperar um pouco de Liora de volta à sua vida. Apertou a fotografia contra o peito e deixou que as lágrimas rolassem livres do seu rosto.

Talvez se apertasse aquela imagem o suficientemente forte contra o peito, o buraco formado no seu coração pudesse finalmente começar a sarar.

Talvez...

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Fotógrafo de Guerra  ✔Onde histórias criam vida. Descubra agora