Eu precisava de você para ficar

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Bárbara

11 de novembro de 2018, BH

São 23h de um domingo e nossa mãe ainda não chegou. O que é muito estranho, já que ela nunca chegava depois das 18h. Eu e Bianca estamos deitadas no sofá da sala, esperando por ela. Confesso que a sensação de medo já se instalava no local, mas tento ser o mais forte que posso, pela Bia. Eu sempre odiei demonstrar pensamentos negativos, sempre quis exalar a melhor energia que posso, porque no fundo eu acredito que a situação melhore, de qualquer maneira.
— Babi, eu realmente estou preocupada. Nós não podemos continuar sabendo sobre o que está acontecendo apenas pela metade. Nosso pai não pode simplesmente colocar nossas vidas em risco. A gente tem que fazer alguma coisa, eu preciso disso mais do que tudo. — sinto o olhar aflito de minha irmã pesar sobre mim, e apenas solto um longo suspiro.
— Eu te entendo, Bia... Mas o que podemos fazer? A resposta é nada. Estamos num ciclo vicioso no qual nossa mãe não quer nos deixar sair.
— Se ela não quer deixar, nós vamos ter que sair por conta própria. Você não entende que sua vida está sendo negociada, Bárbara? Nós ouvimos claramente a voz do Bruno aquele dia, falando que o prazo final pra pagar a dívida do nosso pai é fevereiro. E que eles querem você em troca.
— Não sei... Talvez seja só mais uma falsa ameaça para que a gente continue dando-lhes mais e mais dinheiro. Já parou pra pensar nisso? Eles estão ganhando muito sem fazer nada.
— Mas você sabe que nossa situação econômica está piorando cada vez mais. Isso não é algo a se ignorar, pelo contrário, temos que nos preocupar e tentar, sim, se posicionar sobre. — ela fala e fico alguns minutos pensando sobre o que fazer, mas nada vem à tona, até que ela se levanta bruscamente e me olha, com uma cara que já conheço — Tive uma ideia.
— Bianca...
— Calma, me escuta. Se nossa mãe não quer falar, nós vamos ter que descobrir sozinhas. Sabemos muito pouco de tudo o que está acontecendo, nosso pai está sob custódia do Bruno enquanto ele não paga essa dívida, que não sabemos qual é e por que é tão grave. Nossa mãe aparentemente tem contato com o pai, pois sai todo final de semana com o Bruno... — eu apenas assinto, ainda sem entender — Olha, onde eu estou querendo chegar é na ideia de seguir a mãe na próxima sexta-feira.
— Sem chances, Bianca. Sem chances. Você sabe muito bem que o nosso pai se envolveu com o mundo do tráfico, e não é algo que podemos nos meter e achar que iremos sair ilesas. Se a mãe não quer nos envolver, deve ter um motivo muito importante...
— Bárbara, não importa. Já temos 19 anos, não somos mais crianças. E eu entendo muito bem sobre os riscos, você pensa que eu ajo por impulso mas eu estou cansada disso tudo, já parou pra pensar que nossa mãe pode estar se machucando nessas visitas? Pagando algo que nós não sabemos? Se não concorda, tudo bem. Mas eu vou, e nem você vai me impedir.
Seus olhos estão lacrimejando, e sinto a raiva que ela está sentindo. Meu instinto sempre foi e sempre vai ser protegê-la, e quando tento falar sobre isso apenas a vejo saindo da sala, e percebo que errei.

04 de março de 2020, SP

É meu segundo dia de aula e já sinto o peso das matérias de um longo ano que está por vir, e minha cabeça dói só de pensar. Quando escolhi fazer Direito, pensava que seria mais fácil pelo fato de que eu sempre amei história, filosofia e sociologia. Um dos dias mais felizes e com certeza o mais gratificante foi quando eu passei na UFMG em Belo Horizonte, dois anos atrás. Na época o Victor também tinha conseguido sua vaga de Publicidade na mesma universidade, e minha irmã começou o curso de Medicina Veterinária em outra, também muito renomada. Nunca vou esquecer o jeito que ela era apaixonada por animais, especialmente por gatos... Mesmo sem poder trazê-los para casa, ela sempre dava um jeito de cuidar dos gatos de rua, e seus olhos brilhavam a cada ronronado que ela recebia. Essas memórias são tão singelas, e ao mesmo tempo que meu coração aquece, sinto um aperto de saudade. Respiro fundo e quando me dou conta o sinal para o intervalo estava tocando.
A verdade é que depois do ocorrido de ontem, não tive a oportunidade de tentar me aproximar de alguém, fiquei tão atordoada e absorta em meus pensamentos que o dia passou até meio despercebido. No fim, o melhor a se fazer é começar a me enturmar. Pensando nisso, me levanto e vou em direção à garota alta, morena e de olhos verdes que perguntou se nós nos conhecíamos ontem, na saída.
— Ei, perdão interromper. — digo ao ver que ela ainda estava copiando algumas anotações — Eu acabei não te respondendo direito ontem, foi um dia muito... cheio.
— Tudo bem, eu percebi. — ela responde, soltando um riso fraco — Desculpa chegar daquele jeito também, pensei que eu havia até te intimidado... Do jeito que eu sou meio louca, enfim.
— Imagina, não me intimidou! — rio, um pouco sem graça pela situação — Mas sobre sua pergunta, ainda acho que nunca nos vimos, só se você já tiver ido para BH, onde eu morava até mês passado.
— Realmente, eu nunca fui. Deve ter sido engano, mas seu rosto é bastante familiar. Como você se chama?
— Bárbara. E você?
— Milena Esquierdo, o que é irônico já que estou cursando Direito. Meu Deus, essa foi péssima...
— Se te consola, já ouvi vários trocadilhos com o meu sobrenome do meio, Passos. — solto uma gargalhada ao lembrar de várias brincadeiras que faziam comigo e com a Bia, no entanto quando paro de rir, vejo que a Milena parece... surpresa? — O que houve?
— Não é nada. Só lembrei de algo, nada importante. Então, eu já vou. — ela arruma seus cadernos com uma certa pressa, e eu não entendo o que eu disse de errado.
— Você pode me levar até o refeitório? Eu ainda estou bem perdida em relação ao campus, no geral. Se não for incômodo, claro. — pergunto, tentando dar continuidade à conversa.
— Sim, tudo bem. Eu te levo até lá. — o tom leve e brincalhão de sua voz havia sumido, e começo a ficar preocupada, será que ela sabe do que aconteceu? — Vem, é bem perto, mas existem vários corredores até que você se acostume.
Após um tempo seguindo-a e tentando decorar as direções até o refeitório, finalmente chegamos. O local está lotado de mesas e pessoas ali sentadas, no fundo há uma grande cantina, parece um boteco, sendo sincera. Assim que chegamos, Milena fala que precisa ir ao banheiro e me explica brevemente como funciona a compra de comida, antes de sair apressada para outro lugar. Fico instigada e confusa sobre tal comportamento, pois não falei nada demais e parece impossível ela saber sobre algo a meu respeito. Tento deixar esses pensamentos de lado e focar na fome que estou sentindo, e logo passo pela grande praça de alimentação para comprar alguma besteira.
Feito isso, tento sentar em algum canto isolado, já que a morena havia sumido e eu não conhecia nem uma folha da USP. Enfim, acho um banco afastado e vazio, e ali decido ficar, comendo meu sanduíche. Desde quando cheguei em casa no dia anterior, fiquei pensando em como vou conseguir passar todos os dias, de segunda a sexta-feira, agindo normalmente sendo que a qualquer momento eu poderia trombar com a Carolina outra vez. Vê-la foi como retornar ao passado, e reviver todos os momentos e sensações que existiam enquanto estávamos juntas, e eu realmente achava que havia superado. Meu olhar a busca como se fosse algo automático, mas entre tantas pessoas não consigo enxergar nada. Estamos tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe. Saber disso me assusta e me tranquiliza, é muito para raciocinar e eu só queria procurá-la e despejar tudo o que deixamos sem dizer uma a outra quatro anos atrás... Mas sei que não posso simplesmente voltar como se nada tivesse acontecido e deixá-la sobrecarregada com isso, não tenho nem ideia de como vai sua vida, se ela está em um relacionamento, se ela já apagou da sua vida esses meses.
Os quinze minutos que tínhamos de pausa passam sem demora, e fico grata por ter ficado tranquila, escutando música e deixando uma calmaria se instalar em minha mente. Concluo que foi, sim, a melhor decisão que tomei ao sair da minha cidade natal e vir para outro estado, em busca da minha felicidade. Ao voltar para a sala, procuro Milena e me surpreendo quando noto que a mesma já estava me fitando, parecendo curiosa. Ao perceber, ela desvia o olhar e finge conversar com o garoto sentado atrás de sua carteira. Antes que eu pudesse fazer algo, um professor entra no local e logo inicia sua explicação.

Duas horas depois, finalmente o período de classes encerra. A primeira coisa que me instiga é perguntar à Milena o que tinha acontecido, mesmo não sendo próximas eu realmente fiquei preocupada do porquê ela começar a agir daquele jeito quando disse meu sobrenome. Então, após arrumar meus materiais, saio da sala procurando-a. Quando a avisto virando o corredor, aprumo o passo e já estava quase chamando sua atenção quando vejo que ela tinha encontrado companhia. Reconheço-a no mesmo instante que meus olhos repousam sobre seu cabelo loiro, e seu corpo que perto do da morena parecia ainda menor. Novamente sinto tudo o que veio à tona ontem, durante aqueles míseros segundos. E agora entendo o que aconteceu com a minha colega de classe. O clima pesa enquanto nós nos encaramos, e vejo Carol abaixar o olhar para suas mãos, que estavam se entrelaçando freneticamente, um sinal de nervosismo o qual eu entendo muito bem.
— Oi... Bárbara. — Milena finalmente se pronuncia — Essa é minha amiga, Carol. — ela fala e a loira solta um grande suspiro
— É, eu sei. — digo, por fim — Tudo bem?
— Comigo? — é a primeira vez que ouço sua voz em quatro anos, e sinto todos os pelos existentes em meu corpo se eriçarem. Apenas assinto, sem saber o que dizer ou fazer — Sim, tudo bem. E com você?
— Hum, normal... — será que se alguém passar aqui vai sentir a tensão no ar? — Não sabia que você estudava aqui, mundo pequeno né? — meu Deus, como eu sou patética.
— Pois é, estou cursando o último ano de Marketing, já que tinha dado aquela pausa em 2016. O que me arrependo de ter feito até hoje. — fui atingida por cinquenta, cem, duzentas, milhares de facas no peito, e de repente esqueço de como formar qualquer palavra na minha mente — Eu já estou saindo, antes que perca o metrô. Tchau, Bárbara. — ela conclui e sai, puxando a Milena consigo e me deixando paralisada no mesmo lugar por longos minutos.
Ainda em transe, ando atordoada até a saída, pensando em tudo e em nada. Seu tom de voz não sai da minha memória, o jeito que meu nome saiu de sua boca, suas palavras me atingiram como se fossem sobre a pior notícia do mundo.
Quando chego em meu pequeno apartamento, jogo minha mochila no sofá e desabo no mesmo instante. Começo a tremer e tento lutar contra a onda de sentimentos que chegou, do nada. Não posso me afogar, não posso. Corro para a geladeira e bebo um longo gole de água fria, e começo a normalizar minha respiração. Finalmente me sinto mais calma e percebo que, realmente, não podia agir normalmente depois de tudo o que aconteceu. Mas a esperança de tê-la de volta se enterrou outra vez, e isso dói. Machuca, e não queria que machucasse. O único que penso e repito é:
— Continue a nadar. Continue a nadar...


NOTAS DA AUTORA:
Ei, me desculpem por ter demorado tanto para postar. Aconteceu várias coisas durante esses dias, e eu realmente não conseguia escrever. Mas enfim, finalmente o capítulo fluiu e eu espero que gostem. Qualquer coisa me chamem no twitter: @ featbabitan. E, outra vez, muito obrigada pelos votos e comentários, isso me motiva demais!

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