Irmandade

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Sinto o calor a transpassar minha pele, estou em chamas. Não recordo as circunstâncias em que me devora, mas sinto cada célula que em mim corrói. 

Está tão frio…

Desperto sobre o frio azulejo e toda dor da flama que me acomete se esvai tal qual um sonho ruim. Sobre a quase inexistente luz noturna, mal vejo os rostos daquelas que me observam do alto, mas enxergo com nitidez o vermelho que pulsa em seus olhos.
Me ergo com dificuldade, sendo apoiada por aquelas que me rodeiam.

— Alegre-se, querida irmã, porque hoje a Deusa lhe concede uma segunda chance.

As onze mulheres sob capuz negros, se afastam enquanto a décima segunda prostra diante de mim um carneiro atado. Posso sentir o cheiro da terra sob seus cascos, de grama entre os dentes.

Elas esperam por algo e tenho uma ideia do que seja. É o que também espero. Que minhas unhas sejam fortes o suficiente para rasgar-lhe o couro e que meus dentes sejam afiados o suficiente para perfurar-lhe a carne. Seu sangue quente escorre sob meus lábios e em minhas mãos enquanto o devoro. Não quero desperdiçar mais nenhuma gota, nenhum pedaço. Sinto sua vitalidade revigorar meu cansado corpo. Sinto sua morte correr entre meus dedos.

A mulher que cobre em manto meu corpo despido sorri para mim.

— Com imensa alegria a Irmandade a recebe. Seja bem vinda, irmã Abigail.

O que é a Irmandade?

Sob a tutela de Irmã Joan, sou instruída a respeito do ofício de uma Irmã de Sangue. Garantir qualidade de vida aos filhos de Adão e Eva rejeitados por sua espécie ou  atingidos por alguma enfermidade.

Sob a tutela de Irmã Elizabeth, sou exposta a todo conhecimento armazenado naquele antigo templo. Toda medicina, astronomia e misticismo que me dará poder para cumprir minha missão.

A Irmã Mariam me revela mais sobre a escolha da deusa sobre mim. Sobre um passado que minha mente se negava a recordar. Ela acredita que minha alma seja pura e inestimável, mas, honestamente, me pergunto qual heresia me fez digna de ser cremada.

A Irmã Rebecca me estimula a compreender minhas habilidades, as pequenas vantagens que se obtêm ao renascer. Sua juventude e ingenuidade a faz ser uma das únicas irmãs capazes de provocar sinceras risadas.

Com a Irmã Elinor aprendo, aos poucos, a controlar selvagens impulsos, a lidar com as desvantagens de renascer.

Irmã Isobel orienta-me a como externalizar a minha humanidade, a revelar ao espelho aquilo que um dia já fui.

Com a Irmã Olga tenho a experiência de ver uma Irmã de Sangue em campo. Apesar de ainda não suportar a sangria.

Junto à Irmã Frances, vejo os perigos que nos assolam como filhas de Lilith. Caçadores remanescentes que almejam nossas cabeças.

Irmã Bridget me ensina a lidar com longas peregrinações. A caçar sem deixar rastros.

Com a Irmã Susanna, visito uma última vez o passado que deixei pra trás. Na exata praça em que fui cremada, consigo sentir o cheiro das cinzas daquela que estava ao meu lado. Me pergunto porquê a deusa me escolheu.

Junto a Irmã Martha, testemunho a morte de uma companheira. Aquele que exibe sua cabeça em mãos sorri à minha procura. Desejo vingá-la, mas preciso permanecer invisível, pelo bem da Irmandade, não devo deixar rastros.

Com a Irmã Rachel, devolvo a deusa Lilith a alma de uma irmã.

***

Nunca, em tantos meses, havia parado para pensar que a morte poderia me alcançar mais uma vez, alcançar qualquer uma de nós. Não sei ao certo porquê isso tanto me preocupa, o que tenho a perder.

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