Fazia 30 graus quando a sua sombra tocou minhas mãos

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Deixa eu contar pra vocês que me diverti demais escrevendo esse capítulo. Obrigada de novo ao Higgor, fiel revisor de Além de Irmandade, e aos lindinhos que têm interagido comigo lá no twitter, me sinto mais próxima de vcs e isso dá um quentinho no coração <3

Vou deixar o link pra playlist do capítulo lá no meu tt: wtfapus

Boa leitura!

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Quando se está no meio de uma grande mudança, os dois piores momentos do dia são o Antes de Dormir e o Depois de Acordar. Entre eles, é relativamente fácil se deixar levar pelas coisas como elas estão. Principalmente para alguém que, como eu, quase nunca vai contra a correnteza.

Desde o momento em que eu soube que precisaria trocar a vida pacata em Constância, minha cidade natal, por uma nova em Alto Norte, também comecei a me perguntar porque parecia tão difícil fechar os olhos com calma antes de dormir, ou porque havia se tornado um desafio físico acordar com a mesma energia pacífica de todos os dias.

Às noites, quando o interruptor da introspecção se ligava, minha mente dava voltas nela mesma. Eu olhava para o escuro do meu quarto e o escuro olhava de volta para mim. Eu tentava sentir o cheiro do amaciante de sempre e a textura do meu travesseiro velho, como uma daquelas crianças que não conseguem dormir sem o paninho-amigo.

Nessas horas, todo o tipo de memória flutuava por trás das pálpebras cada vez que eu perdia para o cansaço e fechava os olhos. As doces, as amargas e, numa mistura de sonho e realidade, aquelas memórias inventadas de respostas que eu nunca dei, atitudes que eu nunca tomei, um aniversário triste, os olhos da mamãe...

Então o sono vinha e apagava tudo. Com pesadelos ou sonhos, tanto fazia: era bom se subtrair na inconsciência. Mas, então, quando o despertador tocava, a realidade vinha como uma prisão sem fuga. Sou eu e a vida.

A primeira coisa que fiz, depois de desligar o despertador, foi me perguntar onde é que eu estava. O teto era diferente, sem meus adesivos de planetas e estrelas que brilhavam no escuro. O cheiro também era diferente: lençol novo e tinta de parede.

Me senti vazio. Era como se minha antiga casa sequer existisse nessa nova realidade. Virei de lado, debaixo das cobertas, sem vontade de levantar da cama. Com a bochecha espremida contra o travesseiro e os cabelos compridos sobre os olhos, deixei a minha mente livre para a saudade tomá-la de canudinho.

Mas foi um pouco estranho. Não era como se eu sentisse falta da escola. Nem dos aniversários melancólicos em que o meu pai se lembrava da minha mãe, mas ainda assim se recusava a tocar no nome dela.

Os momentos que realmente beiravam a felicidade estavam nas férias que eu passava na casa da vovó, no interior. Ou nas cores pastel que eu espremia na tela de um novo quadro de pôr-do-sol. Esse tipo de coisa não estava de mudança. Eu continuaria pintando novos céus. Continuaria visitando a vovó no verão de fim de ano. Mesmo que já não fosse mais apenas meu pai e eu.

Talvez, a minha única saudade estivesse mesmo na familiaridade certeira de dizer "vamos pra casa" sentindo que casa é lar.

Minha antiga cidade, Constância, era mesmo bem parada. E eu gostava disso. Eu tinha uma padaria preferida e, quase todas às tardes, andava de bicicleta até lá para comprar pão e carolinas com recheio de doce de leite.

Nos finais de semana, eu geralmente tirava um cochilo sob o telhadinho da casa da árvore no quintal, fugindo das saídas em grupo que o Matheus inventava. E, nos dias de semana, a escola era só mais um capítulo entre as páginas dos livros nos quais eu vivia com a cara enfiada.

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