PRÓLOGO

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Eu estava correndo a plenos pulmões e a adrenalina fazia com que minhas pernas dessem passos largos e rápidos, logo pude começar a senti-las queimando como se estivessem a ponto de explodir. Mas não havia tempo para se dar ao luxo de sentir qualquer coisa, eu precisava correr.

Quando se está entre a vida e a morte, a gente se agarra aos instintos mais primitivos de sobrevivência, que foram desenvolvidos ao longo de anos e séculos pelos primeiros seres humanos que temeram não só pela suas vidas — como é o meu caso agora —, mas pela sobrevivência de toda a espécie Homo sapiens.

Os corpos daqueles que sobreviviam sistematizavam e criavam esses "alertas" e "técnicas" de fuga, que hoje — graças a evolução e ao DNA — viraram um instinto natural que nos fazem correr involuntariamente quando estamos com medo. A adrenalina liberada também faz nosso coração bombear mais sangue para que mais oxigênio e energia corra pelo nosso corpo. Nossas pupilas dilatam para que possamos enxergar o que está a nossa volta com mais detalhes, com a finalidade de preservar a vida — custe o que custar.

E graças a esses homens das cavernas que tinham corrido por suas vidas antes de mim, eu comecei a correr muito antes de ter percebido que os Roxos estavam me perseguindo. Os primeiros passos foram instintivos, mas agora eu corria com tudo de mim. Por um momento, sou grato ao meu corpo por toda essa adrenalina que me permitiu ter reflexos mais velozes e correr bem mais rápido do que eu correria normalmente — sério. Sabia que sem essa dose natural não teria sobrevivido e sabia também que esse surto todo de adrenalina não duraria para sempre e eu precisava achar um lugar seguro logo, antes que fosse tarde demais.

Enquanto isso não acontecia, a corrida era contra a morte. Meu corpo só pensava em correr, correr e correr.

Finalmente, a vejo imponente na minha frente, a tal Sangria, uma região que divide dois mundos, duas realidades, quase um grande muro feito de "deus sabe o quê" tão potente que dividia até o céu em cores: vermelho — o único céu que era possível para mim, não conseguia sequer imaginar o outro, que, como diziam, era de um azul brilhante e que, dependendo do ângulo observado, se parecia mais com um tom de roxo.

A Sangria, pra muitos do meu ajuntamento, só existia nas lendas dos anciões. Era difícil saber o que era verdade e o que não era. As histórias eram horríveis; as pessoas que visitavam a Sangria com curiosidade ou esperança,  só traziam desgraça, morte e fome para todo o ajuntamento, e por isso, era extremamente proibido passar dos limites. Por isso, a conversa sobre a Sangria foram sendo abafadas, as histórias viraram lendas horripilantes — uma ótima maneira de tirar a verdade de algo, se quer minha opinião, e ainda vem com o medo que seca as fontes da curiosidade. Para a maioria, a Sangria era uma lenda que tentava explicar a realidade desgraçada, e, para outros, para mim, era um lembrete.

Senti um calafrio subindo por toda a minha espinha e tinha noção de que havia chegado na zona proibida para um vermelho, como eu. O que eu sabia era que meu sangue não era compatível com a frequência vibratória da Sangria, era impuro e vermelho, e isso mexia com meu campo aural, fazendo-o ficar defeituoso, como diziam. Como consequência, tornava-se impossível de atravessar a Sangria e tudo o que eu compreendia era que se chegasse perto demais, um grande pulso energético jogaria meu corpo penhasco abaixo, rumo à morte — muitos poucos sobreviveram pra contar histórias.

Minhas pernas não aguentavam mais, eu já estava correndo a um tempo e por mais que tentasse despistar, os Roxos eram mais astutos e eu já não conseguia mais correr. A dose de adrenalina estava se expirando, e muito em breve eu sucumbiria e talvez desmaiaria. E agora?

Me escondi atrás de uma pedra; péssima ideia, eu sei, mas o meu cérebro ainda estava com o modo primitivo ligado, quase impossível de pensar em soluções mais inteligentes.

O mais engraçado — ou desesperador, minhas emoções também não estavam funcionando muito bem — foi ver que todo o barulho de perseguição acabara assim que me escondi atrás das tais pedras; eram as únicas possíveis para a nossa brincadeira de esconde-esconde na plana e arrepiante Zona da Sangria.

Comecei a ouvir passos se aproximando e já me preparei para o que iria acontecer. Confesso que fiquei um pouco decepcionado por ter gastado tanta energia primitiva Homo Sapiens no percurso, para morrer mesmo assim. Não estava tão preocupado de verdade com a ideia de morrer, todos os vermelhos já nascem de bem com a morte. Morrer era apenas parte do cotidiano, não se perguntava nem como ou por que as mortes aconteciam, todo mundo sabia que o motivo era um só: o sangue vermelho, e isso bastava. Quando nosso sangue não nos intoxicava fazendo a gente sofrer e morrer, os Roxos se ocupavam do papel.

Mas estar acostumado com a morte e tal não significava que eu quisesse mesmo morrer, quer dizer... quanto tempo mais os vermelhos sofreriam a humilhação dos Roxos dessa forma? Eles vinham de tempos em tempos, cruzavam a Sangria e faziam o que bem entendessem? Não éramos o parquinho de diversão deles, onde eles brincam de caça quando quisessem! Minha mãe sofreu as consequências por essa brincadeira de Deus. Eu ainda tinha muitas perguntas não respondidas e a primeira grande regra da cabeça de Miles — eu mesmo — é que se existem perguntas, existem respostas; e eu era um caçador delas.

E então, caçar respostas me trouxe até aqui, onde estou agora, nesse momento, no meio de umas pedras, com os pulmões quase saltando do peito, com câimbra e dando oizinho para a morte. Eu não importava pra muita gente, eu sei, mas eu importava pra mim. Mesmo não ligando pra morte, não queria morrer. Talvez nem viver... queria responder.

Minha mente rapidamente vasculha todas as possibilidades de sair daquela vivo, e dentre todos os cenários possíveis que minha cabeça foi capaz de criar, um apenas talvez não me levasse a morte. Mas a condição pra que isso acontecesse, é que as teorias malucas do meu pai — a maior lenda que o ajuntamento já ouviu, e por isso o mais odiado — precisavam estar certas, o que levava a probabilidade de, sei lá, uns 98% de morte e uns 2% de sair vivo, e era a melhor hipótese que eu tiraria daquela situação.

Naquele momento eu quis muito ter prestado mais atenção nas teorias do velho, mas ele na maioria das horas, era completamente maluco — ou incompreendido, ou apenas odiado, ou sei lá. Pelo menos a Sangria era real e essa era uma teoria que ele pregava com tudo de si, e talvez o resto, por mais maluco que seja, talvez, e só talvez, seja real. Voto de confiança para você, pai.

Peguei impulso nas pedras e corri no exato momento em que o lugar em que eu estava foi destruído. Isso me fez cambalear um pouco, mas eu continuei correndo, sentindo meus músculos reclamarem — muito — de novo. Ao menos, sabia que não seria mais perseguido. Os Roxos sabiam o que a Sangria fazia aos Vermelhos, e eu também. Eles não precisavam se esforçar para me matar, porque eu já tava fazendo esse esforço sozinho; então eles pararam e assistiram.

Passar pela Sangria. Esse era o único jeito de sair daquela vivo. Me lembrei de todas as histórias que ouvi, todas as lendas e o que acontece com um Vermelho quando ousa ir para o céu azul brilhante. Talvez se eu tivesse explodido junto com aquelas pedras eu teria morrido de um jeito mais de boa. Naquele instante, foi quase audível a voz da minha mãe dizendo: "Miles, você sempre gosta de fazer as coisas pelo jeito mais difícil", não tinha nem como contra argumentar me vendo naquela situação.

Mas foco, Miles. Me forcei a lembrar do que o maluco do meu pai dizia:

Espelho Mágico
faz o 1 igual a 7
7 é igual a 1
ilusão é acreditar que vermelho é diferente
mas poderia ser diferente
o que vem do mesmo lugar?
Se isso você pensar
o 7 ao 1 retornará.

Fechei os olhos, ainda correndo, e senti a eletricidade da Sangria já movimentando minhas  células. O meu corpo pareceu reduzir a uma coisa só, mas não de tamanho.  Como em "do 7 ao 1 reduzirá". Eu entendi. Entendi o que ele quis dizer.  Ouvi um pulso, mas em vez de ser atirado penhasco abaixo, como esperado, eu fui sugado para dentro da Sangria.

Meu Deus, pai...

A SAGA SANGRIA: DOMINÓ VERMELHOOnde histórias criam vida. Descubra agora