Afundando

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Dia 28, terça feira, mês 7 do ano 516 após a camada de ozônio.

"Nós não iremos charfundar na imensidão do não saber, nos levantaremos como o sol ao alvorecer. Todos por um proposito e nada teremos a temer."

A sirene está tocando, são os mesmos dizeres idiotas que devemos ouvir duas vezes por dia, por todo o lado escuto pessoas acordando, elas estão se espreguiçando e bocejando, os beliches rangem quando começam a levantar. Um novo dia começa. E eu estou incrivelmente cansada, mesmo após um noite de 6 horas de sono. É o máximo de tempo que já dormi durante o ano todo.

Agora tenho de me levantar, o que é um sacrifício horrendo, mas perder a hora seria ainda pior, jogo os pés para fora do beliche e os encosto no chão, minha cama é a de baixo, o que melhora muito meu senso de humor todos os dias. O chão está frio, mas não me importo, gosto que meus pés sintam o quão gelado o mundo poderia ser, odeio usar as galochas e o traje anti-térmico. Um tanto quando relutante calço os chinelos.

Todos estão seguindo para os banheiros, e eu vou junto, as instalações elétricas estalam pelas paredes, os resfriadores e purificadores de ar fazem um barulho estranho, todos já estão acostumados, e pelo visto estão tão cansados quanto eu, ninguém pronuncia uma palavra se quer por todo o caminho até os banheiros, é como se nossas almas tivessem sido drenadas, e nossos corpos são cascas vagando em busca de reconhecimento e trabalho, o que chega bem perto da realidade. O banheiro já deve estar lotado, como em todos os dias, mas ninguém nunca reclama, não conhecemos um mundo diferente para comparar com o nosso, mas todos os dias, eu tenho vontade de gritar, gritar até meus pulmões não aguentarem mais, até minha garganta arder e eu não conseguir pronunciar mais nenhuma palavra se quer, mas não ouso fazer o que meu coração manda, ele é insensato, minha mente por outro lado é muito sensata, e sempre me avisa que se eu fizesse tudo que quero, não estaria mais aqui.

Uma privada fica livre e sigo caminho até ela, sinto um leve mas firme empurrão para o lado, e a cretina da Carla Androsia passa por mim e entra na cabine sorrindo de forma esnobe. Ela fecha a porta com força na minha cara. Tento manter minhas emoções sob controle, não posso esbofetear a cara dela, isso seria um crime de punição muito alta, e não vale a pena ficar trancada numa cela fazendo o dobro do meu trabalho enquanto ela ri de mim pelos corredores. Outra cabine se abre e eu consigo entrar nela, faço minhas necessidades e saio de lá, vou para a fila de escovação, tem quatro pessoas a minha frente, hoje será melhor do que ontem já começando por quão rápido sairei desse banheiro.

Três pessoas, duas pessoas, uma pessoa. Minha vez chegou, a supervisora me encara e aproxima o escâner ao meu rosto, mas especificamente minha têmpora esquerda, todos temos um número tatuado ali, o meu é 1403499, está alí desde que me lembro. O escâner apita e minha escova aparece pela entrada da parede, a apanho e sigo para a pia.

- 1403499 espere um pouco, tenho que te passar um recado do comando.

Me viro e aceno com a cabeça em confirmação. Ela está olhando para o tablet, mas logo levanta a cabeça e me encara.

- A Senhora do departamento de colheita quer falar com você as onze e meia da manhã de hoje. O assunto não foi citado, é melhor comparecer.

Congelo em meu lugar, o que eu posso ter feito? Participei das aulas de colheita ontem e estava tudo sob controle. A supervisora já voltara a mexer no tablet e apontar o escâner para os outros residentes. Tenho que manter a fé de que não seja nada grave, afinal eu não fiz nada de errado, bom, que eu me lembre não fiz nada que pareça motivo de algum senhor me chamar.

A Cúpula de VidroOnde histórias criam vida. Descubra agora