Parte I - 6 de Julho de 2008

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   Eram quase sete da manhã quando a primeira mosca sentou no nariz de Teodoro. Um tapa certeiro eliminou qualquer rastro de vida do inseto, mas o garoto tornou a ser incomodado quando a segunda decidiu realizar um show de acrobacias ali mesmo, ao redor de seus ouvidos. Foi o suficiente para que qualquer desejo de permanecer deitado se dissolvesse em irritação matinal.

   "Hoje não é 6 de Julho de 2008" -Era o que dizia um dos post-its grudados na porta que ameaçava se desprender do guarda-roupa velho. O papel era de cor amarela e indicava que se tratava de um aviso fixo, como havia lido na folha deixada sob o criado mudo ao lado da cama. Os de cor verde sinalizavam compromissos e deveres que precisavam ser concluídos até o fim do dia. Haviam vários deles espalhados pelo guarda-roupa que ameaçava desabar. Passou os olhos por alguns.

   "Separar o lixo"

   "Pagar o aluguel"

   "Cumprimentar a velha de laços"

   "Chegar ao serviço ás 9"

   "Mandar Josué se fuder - olhar no caderno debaixo da cama. Ignorar a legenda"

   "Mandar Josué se fuder". Puxou o papel com os dedos pesados de anéis. Rastejou a mão pelo piso abaixo de seu leito até encontrar o caderno citado. Procurou pelas diversas páginas o nome Josué. Se deparou com a foto de um grisalho de testas enrugadas e lábios encolhidos. A legenda inferior citava o homem como seu chefe ranzinzo e mal humorado, mas que apesar de tudo não deveria destratá-lo se quisesse ter o que comer. Amassou o post-it e lançou para a lixeira no canto do quarto. Devia estar fora de si quando escreveu o bilhete.

   O papel que mais lhe chamava atenção estava grudado no centro de todos os outros. Era vermelho. A cor anunciava assuntos de extrema urgência, a grafia em caixa alta sugeria:

"LIMPAR A BAGUNÇA QUE VOCÊ DEIXOU NA COZINHA. NÃO ABRIR A PORTA PARA NINGUÉM"

   Post-its daquela cor só eram pregados em situações não convencionais. Teodoro não conseguia sequer imaginar que tipo de festa havia dado para ter que ser avisado com tamanha rispidez.

   Levantou-se com os olhos remelentos, ainda sonolento e um pouco confuso. Foi surpreendido com uma criatura esquelética parada na sua frente. As maçãs do rosto encolhiam para dentro de forma a demarcar os ossos zigomáticos. O cabelo desidratado de cor castanha tocava os ombros e grudava na barba por fazer. Teodoro não conseguia deixar de reparar nas olheiras ao redor das bolas escuras que o encaravam fixamente. Era a coisa mais feia que o garoto já havia visto. Levou um tempo até aceitar que tratava-se do próprio reflexo. Não lembrava sequer da devida aparência.

   Coçou a bunda pelo furo indiscreto da cueca box, seguiu a trilha deixada pelas mudas de roupas espalhadas pelo chão do quarto. Um calendário pregado na porta de madeira marcava que não era mesmo dia 6, nem Julho, muito menos 2008. Era 4 de Setembro de 2011.

   Apesar de muito esforço, Teodoro não conseguia lembrar de nenhum evento pós 2008. Sua mente desnorteada não era capaz de processar nenhuma memória dos anos seguintes.

   Momentaneamente perturbado, cambaleou até alcançar à sala. Mal era possível ver a cor cinzenta das paredes da casa. Todas estavam abarrotadas de post-its que funcionavam como cápsulas de memória. Teodoro era lembrado dos lugares onde já trabalhou, dos bons momentos com os amigos e de como perdeu os pais em um trágico acidente de carro. Seu peito apertou por um breve instante, mas não conseguia chorar. Seus olhos secos lhe diziam que já havia sofrido demais.

   Alguns papéis citavam suas primeiras vezes. A primeira vez que comeu sushi, a primeira vez que pilotou uma moto e a primeira vez que se deitou com uma mulher. O lembrete não dizia quem era a moça, mas podia supor que tratava-se de Elise. A garota estava em quase todos os cantos da casa. Teodoro era lembrado do dia que a conheceu no show dos Tribalistas e do momento que se apaixonou perdidamente pela aspirante a atriz. No caderno de nomes que carregava consigo, Elise era descrita como a dona do sorriso mais bonito que Teodoro já havia visto. Era ela também a proprietária das melhores piadas, dos conselhos certeiros e das opiniões políticas controversas. Ele mal podia esperar para conhecê-la pela primeira vez -novamente.

   À medida que passeava com os olhos pelas centenas de post-its da sala, Teodoro cruzava o caminho para a cozinha. Um balcão de alvenaria separava os dois cômodos pequenos. Distraído lendo os avisos deixados no armário da cozinha, o rapaz só se deu conta de que seus pés descalços tocavam algo quando desviou os olhares para baixo. Um grito de pavor arranhou a garganta, o corpo magrelo foi inconscientemente jogado para trás até cair com a bunda no chão.

   Um cadáver estirado no piso da cozinha era o motivo do terror que recolhia Teodoro.

   Ele estava enganado. Seu reflexo não era a coisa mais feia que já havia visto. Aquilo era.

   Havia na sua frente um corpo feminino deitado de costas para o chão. O olho direito saltava da órbita, o esquerdo sequer existia. Uma parte do crânio aberto despejava massa encefálica por todo o lugar, um gato com os pelos um dia brancos fazia daquela sua refeição. Litros de sangue semi-seco abrigavam dúzias de moscas varejeiras, já era possível ver alguns de seus filhotes andando pelas diversas feridas no rosto da moça.

   Por um instante pensou em ligar para a polícia, mas a ideia soou precipitada demais. Tinha que descobrir o que aquele corpo fazia ali, a identidade do assassino e quem era a garota.

   E se ele tivesse alguma relação com isso? E se ele fosse o real culpado? Afinal, é claro que ele estava envolvido, a moça banhava em uma poça de sangue no meio da sua cozinha. Ele era o único réu possível.

   A visão de Teodoro ameaçou escurecer quando tentou levantar. Apoiou-se no balcão da cozinha, as pernas estavam fracas demais para sustentarem o próprio corpo. O estômago embrulhava sempre que ousava observar mais uma vez o corpo. Em um desses encontros de olhares notou que haviam alguns post-its colados nos braços e pernas da garota. Hesitou por alguns segundos. O gato interrompeu a dieta ao vê-lo se aproximar em passos lentos. Pulou a janela aberta no mesmo momento que Teodoro recolhia os quatro papéis de cor vermelha.

   "Você fez isso"

"Ela mereceu"

"Ela era uma vaca"

"Ela traiu você"

   Não era possível, não podia ser verdade. Teodoro se conhecia, nunca faria isso a alguém. Nunca. De todas as lembranças que tinha guardadas consigo nenhuma remetia a um lapso de violência tal como aquele. Nenhum surto ou sintoma de psicopatia ao ponto de tirar a vida de um ser humano. Aquilo não era do feitio de Teodoro, nunca havia sido, não do Teodoro de 2008...

   Mas e aquela criatura estranha que inesperadamente surgira no espelho do quarto? Ele a conhecia o suficiente? Ela era capaz de executar o ato?

Peixes Artificiais Não Nadam no Escuro (Um conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora