Sacrifício

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Eleonor Villa - Sacrifício

O corredor vazio dava a impressão de espaço limitado, causando uma claustrofobia familiar. Tudo cheirava a restos mortais, era possível enxergá-los nos cantos das paredes, pedaços de cérebro ou tripas espalhadas no chão, o sangue seco escorrido da parede, a lâmpada pendurada no teto causava uma tonalidade amarelada tremeluzindo pelo corredor, avisando que não se manteria acesa por muito tempo. Por mais luz que pudesse ter, o ambiente continuava escuro e gelado, a friagem atingia com força as pontas dos dedos que a luva não cobria, assim ficaria melhor para segurar a haste do facão que Eleonor empunhava.
A mulher olhava atenta o espaço comprido, pisando cuidadosamente pelo piso para não criar qualquer ruído e despertar a coisa guardando o corredor. A capa havia sido jogada para trás da cabeça e os dreads pretos arrumados em coque, assim seria fácil enxergar se alguém estivesse a espreita. A roupa negra facilitava sua descrição através do cenário destruído, contudo, sabia não importar muito, o demônio, dono daquele lugar não enxergava cores. Eleonor achava melhor que uma vestimenta escura pudesse atrapalhar a visão de outros predadores como ela, ainda mais com o caos que o mundo se encontrava lá fora.

Um passo em falso e estaria perdida, teria pouquíssimas chances para sobreviver. A última vez que atravessara o corredor do esconderijo era acompanhada por outra pessoa. Um rapaz que seguia até sua casa, lá dentro lhe foi prometido comida e água, se ajudasse os outros do grupo com as tarefas perigosas longe do subsolo. O rapaz alguns anos mais novo do que Eleonor, tremia de medo quando passaram pela porta entreaberta do prédio abandonado, a parte externa era perigosa, mas estar no ninho, sabendo que um predador sedento de sangue os aguardava, provocava uma insegurança que forçava os olhos marejarem de pavor.

Eleonor mantinha seu facão empunhado também, em guarda a qualquer som diferente do usual, pronta para atacar, o jovem também havia sido avisado, diferente de Eleonor, ele não era tão preciso. Dez passos dentro do corredor sujo, o tênis do medroso chutou para longe um piso deslocado, o som ecoou vivo dentro passadiço. Eleonor o encarou de soslaio, sem fazer esforço em encarar o convidado com qualquer tensão, sabia o que fazer e só queria ter certeza que o mesmo ainda se encontrava no mesmo espaço que ela.

Algo urrou na escuridão, atravessando o espaço apertado, arranhando as paredes com suas unhas pontudas, o som insuportável como garfo na porcelana. Num rápido movimento, Eleonor capturou os fones pendidos sob o pescoço e os encaixou nos ouvidos, abafando o som da criatura. A bota de cano não produzia baque no chão, Eleonor havia incrementado pedaços de borrachas no mesmo, portanto, sua presença ainda era uma surpresa. Seus calcanhares viraram-se com velocidade ao sentir o peso da gravidade sobrenatural que o demônio tinha no ataque de fome, Eleonor jogou o corpo contra a parede sentindo as costas doerem pela batida.

A coisa humanoide pulou sob o jovem amedrontado, com seu urro em meio aos gritos de dor, o sangue espichando por todos os lados fora a confirmação que Eleonor precisava, empurrando o corpo para frente ela escapou corredor a dentro. Ignorando os sons de ossos sendo quebrados e pele dilacerando, que ficavam cada vez mais distantes com a ajuda dos fones de ouvido.

Agora, Eleonor não tinha ninguém ao seu lado, só precisava dar um jeito e fugir de lá o mais rápido que pudesse, não poderia ser impulsiva e arriscar uma manobra, certamente seria bloqueada e seu corpo jogado ao longe graças a investida que viria. Tratou de permanecer silenciosa, respirando profundamente mantendo a adrenalina sob controle. Engoliu seco quando ouviu o chiado próximo de ratos, seus olhos fizeram uma rápida busca pelos cantos, mas não encontrou os animais.

Cada passo era perigoso, a bolsa pesava nas costas, os mantimentos que havia achado deveria ser o suficiente para os outros do esconderijo, assim como os poucos remédios que encontrou numa casa afastada do prédio onde habitava. Torcia para que sua saída não fosse em vão, e almejava estar viva por mais um dia. Fungou ao pensar de novo na desgraça em estar sozinha, o garoto teria sido útil novamente.

O estampido de alguma arma inconveniente ecoa do lado de fora, o som repentino assemelhava-se a terremoto no prédio que Eleonor estava, chegando a cair destroços empoeirados do teto.

—Mas que merda. - murmura abaixando a cabeça se deixando soltar uma longa respirada mau humorada. Seus dedos se fecham com força na haste, e o facão reluz afiado.

Aquele urro se apodera do corredor, e os tiros do lado de fora desaparecem sobrepostos ao som do demônio. Ele corre pelo corredor, vociferando no mais puro ódio. Eleonor mantem os pés firmes no chão, não poderia recriar a manobra de se jogar na parede como da ultima vez, o ser enxergava uma única presa e era ela. Eleonor teria alguma chance, talvez um, mas não seria eficaz completamente.

A mulher encontra o máximo de ar para guardar como energia, sentindo o cheiro forte de cadáver escapar da garganta gritante que se aproximava, o odor pungente se transformava em um gosto nojento, e Eleonor tivera que suportar a vontade de vomitar e se dar de bandeja a besta enfurecida.

Olhos atentos a escuridão, a luz da lâmpada evidenciava sua presença, e ela se amaldiçoou por não ter estourado aquela porcaria antes.

A voz gentil da irmã se repetia como mantra cravado em seu cérebro. "Se mantenha viva, Elo, não importa se eu não estiver aqui, só fique viva." A reza energizava o peito, seu coração acalmou-se no mesmo instante, não seria hoje que viraria comida.

Seus lábios se apertaram num linha fina, os nós dos dedos empalideceram pelo punho fechado, seu olhar atentou-se firmemente ao fim do passadiço extenso. A adrenalina afogava o corpo na emoção do perigo e por milésimos de segundos, seus olhos captaram a figura do monstro em meio ao negrume. Euforia poderia se encaixar na situação se não fosse tão agravante as consequências de falhar na defesa.

O ser aproximou, o vento cortando o ar com sua passagem, cara a cara com aquilo, Eleonor podia ver o rosto da irmã passar diante de seus olhos. A morte era real, e agora enxergava o quão próximo estava. A feição chorosa de Ellen gritava para ela, o pânico instaurando como da ultima vez que a vira com vida. Eleonor sentia a garganta travar, o mundo havia parado de rodar por um segundo, mas que pareciam horas. Um único movimento, não seria para matar, obviamente, mas o suficiente na distração. Eleonor cortou o ar a sua frente, sentindo a lâmina rasgar o rosto ilusório da irmã. A imagem de Ellen desintegrou, e a boca rasgada do demônio permaneceria rondando seus pesadelos se saísse inteira do corredor.

Sua pele era suja com o excesso de sangue seco, a pele acinzentada reluzia perante a luminescência da débil lâmpada acima de suas cabeças. O monstro um dia fora alguém, amiga de alguém, o amor de alguém, filha de alguém, e agora se tornara tal criatura. Prestes a rasgar Eleonor se tivesse chance. Fora capturada pelo maldito vírus e Eleonor mataria sem pensar se fosse para sobreviver, de repente, aquilo não era mais conhecida de alguém, tudo fora abandonado, deixado para trás, e agora, aquele era sua realidade. Não era um ser humano, portanto, não seria tratado como tal.

O corte no peito afetou momentaneamente o ser das trevas, distraindo-a o suficiente para que Eleonor conseguisse esgueirar por baixo do ataque alto. Ela contava com o elemento surpresa, já que era quase impossível uma pessoa conseguir machucar aquelas coisas. Mas Eleonor treinava até desmaiar para quando aquele dia chegasse.

Hoje não seria esse dia.

Ao fundo do corredor alguma coisa ressoou num som infernal. Tanto ela quanto a coisa encararam a escuridão, alguém gritara ruidosamente. Tempo suficiente de Eleonor empunhar o facão no olho vermelho do bicho, a dor estampada reverberou alegria na mulher. A arma branca ficara presa em seu rosto, mas Eleonor avançou ao jogar seu corpo para frente, jamais correra tanto em sua vida como naquele momento, o corredor se via logo ali, seu final alertava a segurança e mesmo que os passos pesados do infeliz estivessem em seu encalço, pela primeira vez, ela agradeceu por estar em um grupo. 

Sem AlmaOnde histórias criam vida. Descubra agora