CAPÍTULO ÚNICO

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VOCÊ SABIA QUE NÃO É EDUCADO ficar encarando a perna de pau de outra pessoa?

O dia de Abel estava, sem dúvidas, ficando memorável.

Para começar, a manhã havia emergido quente, o pico mais alto de calor aconteceu por volta das dez da manhã e se estendeu até às três da tarde, dando o começo de um humor irritadiço e exasperado nele. Não ajuda em nada que ele tivesse sido arrastado para o parque de diversões da vila, o irmão mais novo um turbilhão de euforia para começar a comemorar as festividades de Halloween daquele ano.

Por volta das quatro, cansado de ser arrastado de um lado para o outro em meio ao emaranhado de pessoas com o inevitável cheiro de suor impregnando as narinas, Abel encosta-se a um grosso pilar de madeira e tira um caderno de couro do bolso. Poucos minutos depois, ele é importunado por um idoso, cujo interesse em repreendê-lo por estar olhando para a perna de pau da mulher que jogava na tenda de mira o atrapalha de seus devaneios.

— Em minha defesa, — ele gagueja, as bochechas ficando coradas de vergonha. — -não existem muitas pessoas usando pernas de pau por aqui.

O homem faz um barulho com a garganta, concordando. — Fiquei sabendo que ela é capitã da Aquamarine.

— Aquamarine?

— Um navio.

— Ah. — Abel arregala os olhos. — Ela é... Pirata?

— Embora ela prefira ser chamada de navegadora. Ou simplesmente Capitã Rose. Não que eu vá saber de alguma coisa, é claro. — Ele o encara com um olhar astuto, que Abel prefere ignorar.

— O que uma capitã estaria fazendo por essas partes? — ele murmura para si mesmo, mas o estranho responde mesmo assim.

— Pegando suprimentos para a navegação e sua tripulação, suponho. Os rumores dizem que ela pretende atravessar a Vila em Ruínas amanhã de manhã e então voltar para os mares daqui algumas semanas.

Abel observa a mulher por um momento, a voz do estranho se tornando nada mais que um zumbido distante. Ele vê a capitã vencer a gincana, algo como acertar os alvos com uma pistola, e sair com uma pelúcia de papagaio em seus braços. É estranhamente infantil. Embora a perna de pau, as roupas escuras e o chapéu pirata — igualmente ridículo — em seus cabelos castanhos fossem intimidadores, Abel encontra algo reconfortante ali, algo como um formigamento no peito.

Mas antes que ele sequer possa pensar em questionar aquela sensação branda em seu interior, a capitã vira-se para ir embora e, no momento que o faz, Abel engasga com o próprio ar em sua garganta, admiração sendo substituída por puro espanto.

— O que aconteceu com o rosto dela? — ele pergunta ao homem, interrompendo-o no meio da fala.

A mulher tinha o rosto deformado por uma impressionante falta de pele que começava no canto direito da boca e subia até a metade da bochecha. O mais impressionante de tudo isso, de fato, era a exposição de seus dentes e o osso da mandíbula, tão reais e assustadores que, enquanto falava, mexiam-se com os movimentos de seus lábios. Era surreal demais pensar sobreviver com aquela deformidade, mas, novamente, quando alguém estaria esperando uma pirata naqueles arredores?

No momento que os olhos da capitã encontram com os de Abel, ele sente algo estremecer dentro dele. A expressão da mulher logo se fecha como uma tempestade, escurecendo e tornando-se severa como a de uma pessoa que viu a morte passar diante de seus olhos. Ela dá as costas para Abel, enviando-lhe um último olhar absoluto que o faz se arrepender de ter a perturbado em primeiro lugar.

— Pobre mulher — diz o idoso, chamando a atenção de Abel novamente. — O mundo às vezes é cruel demais, deixe-me te dizer, rapaz. Pessoas que carregam poderes grandiosos demais para suas almas pequenas. — Ele suspira entristecido, de um segundo para o outro perdido no que Abel acredita serem memórias.

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