1 - Poeira Cósmica

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Já fazia um tempo que Morfeu observava, arrebatado, a galáxia além dos painéis de vidro da espaçonave. A escuridão se estendia como um plano de fundo estático, homogêneo e interrupto. As estrelas queimavam infinitamente e transcendentalmente sobre a escuridão, iluminando o vazio, em cores e tonalidades múltiplas, vivas e abrasivas. A poeira cósmica pairava pelo vácuo, entre a distância melancólica e solitária das estrelas, cintilando timidamente, dando um estranho ar de vitalidade ao frio e cruel espaço. De todas as coisas que Morfeu amava, o espaço era o que ela amava com mais intensidade. Mas mesmo tendo uma paixão tão inexplicável por ele, essa era a sua primeira viagem espacial. Sua primeira vez vendo o espaço, não apenas o imaginando, mas o contemplando. Não o observando em uma simulação, mas na forma mais verdadeira e legitima que se poderia observá-lo.

Sua mão direita estava sobre o peito, onde ele segurava com a ponta dos dedos o fino cordão de ouro vermelho que havia sido de sua mãe. A verdade é que ele sentia sim falta de casa, mas ainda não saudade suficiente para decidir voltar. Para estar novamente na sua nublada, cinzenta e poluída cidade natal. Preferia continuar ali, no espaço aberto. Tudo no espaço era mais lindo e ironicamente mais vivo, do qualquer dia sua antiga vida ou cidade fora. Todos os dias ele acordava mais cedo que todo o resto da tripulação para ficar ali, parado no corredor dos dormitórios, observando a galáxia. De uma forma bizarra e intrigante, nos momentos em que ele contemplava o infinito ele não se sentia mais o mesmo. Sentia como se compartilhasse um segredo sujo e maldoso com o universo, um segredo que o fazia ser diferente daquilo que pensava ser, um segredo tão terrivelmente assustador que só de ter consciência dele, já o tornava cumplice de algo mais poderoso. Uma estranha pulsação o percorria quando ele pensava nisso, como se algo frio e pegajoso estivesse rastejando lentamente para dentro de seu corpo, para dentro de sua mente, o incorporando... o transformando...

-Morfeu? – Uma voz doce e feminina o fez se sobressaltar, saindo abruptamente de seus devaneios. Ele olhou para Amélia meio assustado. Depois de um breve tempo a encarando, percebeu que ela esperava uma resposta.

- A-ah, sim? – sua voz quase vacilou.

- Desculpe se te assustei. Não era minha intenção. – Ela disse como um  ronronar macio.

- Não se preocupe, não assustou. – Disse com a voz mais firme e se empertigando, sorrindo gentilmente. Não iria demonstrar vulnerabilidade na frente Amélia. Quando percebeu que ainda segurava o cordão, colocou rapidamente dentro do justo traje espacial. Mesmo sendo tão cedo, Amélia tinha sentidos apurados e uma perspicácia afiada a qualquer hora do dia, Morfeu odiava ter que ser cuidadoso tão cedo.

Ela se aproximou dele lentamente, desviando o olhar dele e encarando a galáxia do lado de fora. Apesar de não se sentir muito confortável perto de Amélia, não recuou. O silêncio se prolongou entre os dois, Morfeu não se incomodou em mudar isso, até que ela o fitou com os pretenciosas poças escarlates que eram seus olhos e disse:

- É realmente incrível como um lugar tão indiferente a tudo pode causar tanta admiração em alguns. Me pergunto o por quê? Você sabe o por quê?

- Não faço a mínima ideia. – Ele disse olhando no fundo das suas esferas vermelhas, não pretendia vacilar olhando para fora. Ela devolveu o olhar, só que mais penetrante, parecendo tentar decifrar o que a resposta realmente significava. Morfeu sentiu um formigamento na calça, parte de não se sentir confortável perto de Amélia era isso. Por fim Amélia sorriu positivamente e falou:

- Muito bem. Quando Val acordar não esqueça de lembrá-la que teremos reunião depois do café da manhã, o capitão disse que se ela faltar mais essa reunião começara a sofrer penitências.

- Claro, lembrarei.

Então ela se afastou sem mais palavras, indo em direção a sala de refeições. Morfeu suspirou. Amélia não era a mais intimidadora daquela tribulação, mas com certeza era a que ele menos mantinha contado, por segurança. Ela trabalhava junto com a médica geral, cuidando da saúde da tripulação. Como ela era formada em psicologia e psiquiatria, era responsável pelo acompanhamento psicológico da tripulação, tentando manter todos mentalmente estáveis – essa com certeza não era uma missão fácil. Viagens espaciais tendem a ser altamente estressantes e sufocantes em certo tempo – Morfeu aprendeu isso nas aulas de preparação, antes de entrar para The Skeld - e ela estava ali basicamente para evitar que ficassem loucos ou tentassem matar um ao outro. Mas logo Morfeu descobriu que odiava ser psicanalisado. Descobriu que apesar de achar que não tinha nada a esconder, não queria ninguém na sua mente.

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⏰ Última atualização: Feb 21, 2021 ⏰

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