II

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Foi simples assim: eu morri. Nada glorioso: não me atirei na frente de um carro para salvar um menininho, não me afoguei buscando um filhote de gato preso numa enchente, nem enfrentei bravamente nenhuma doença terrível até o fim das minhas forças. Nem mesmo resisti a um assalto. Não foi nada fenomenal. Eu só estava voltando para minha casa com um saco de pão na mão. A noite estava tranquila, tinha pouca gente na rua. Passei por uma travessa deserta e mal iluminada e não vi o paralelepípedo solto na calçada. Tropecei, caí, bati a cabeça na pedra, e pronto. Morri. Sem deixar nenhuma história hercúlea para minha mãe se lembrar de mim. Só um adolescente desengonçado que tropeçou numa pedra e bateu as botas.

A primeira coisa que pensei quando abri os olhos foi nos pães. Pensei que o pão tava caro, e que tomara que não tivessem rolado todos pra fora da sacola e se espalhado pela calçada suja. Se isso tivesse acontecido, eu ia levar os seis pães para os cachorros de rua de perto de casa, mas teria que voltar na padaria pra comprar mais alguns, e eu não tava muito afim de refazer o caminho até lá porque eram sete quarteirões. Mas aí percebi uma névoa esquisita no chão e minha visão entrou em foco, e fiquei bem desnorteado com o que eu enxerguei.

Não havia muita coisa em volta, só um grande vazio azul, da cor da madrugada um pouco antes de amanhecer, mas umas coisas começaram a aparecer: um poste, umas árvores azuis, uma rua de pedra, e era como se já estivessem lá e estivessem entrando em foco na minha visão. Quando eu notei que os pães não estavam em lugar nenhum em volta, fiquei com a impressão de que alguém tinha despejado um caminhão de gelo bem em cima de mim, porque aí eu percebi que a situação era séria. A névoa passava devagar pelos meus pés sem fazer nenhum barulho, e eu comecei a suar frio e tremer feito uma vara verde. Daí surgiu uma porta e, como não tinha ninguém em volta e eu tava mais perdido que alpinista em desfile de moda, eu fui pra lá, rezando um pai-nosso atrás do outro.

Quando cheguei perto da porta branca vi a parede em volta dela aparecer, e aquele lugar me lembrou da casa no interior onde morei quando era criança e meu pai ainda era vivo. Meu estômago deu um nó e pensei que fosse vomitar. Mas girei a maçaneta, a mão escorregando de suor, e entrei numa sala grande, com um tapete branco e azul, paredes pintadas de um amarelo clarinho, alguns vasos de samambaias tipo renda portuguesa espalhados pela sala (eu sei o tipo da planta porque minha mãe tem cinco vasos dela). No centro da sala havia uma mesa branca grande sem gavetas, com uma cadeira estofada com uma padronagem clarinha de canários, e, na parede atrás da mesa, um grande par de portas de correr brancas. A mesa estava vazia.

Andei inseguro pela sala procurando alguma referência: um panfleto, um mapa, uma janela, um espelho, porque eu já tava com a certeza de que alguma coisa muito fora do normal estava acontecendo. Achei que eu podia ter sido abduzido, ou então tinha sido transportado para uma dimensão paralela e estava numa cidade fantasmagórica cheia de coisas para desvendar, que nem naquele jogo Silent Hill. Se tivesse um espelho por ali, eu podia ter sido sequestrado pra dentro de um experimento secreto do governo e estaria sendo observado por agentes secretos do outro lado, apesar de achar que o governo do Brasil não é do tipo que faz esse tipo de experimento. Eles parecem estar mais interessados em corrupção e desvio de dinheiro, mesmo sendo muito mais maneiro conspirar pra encobrir a verdade sobre extraterrestres da população em geral, apesar de que o povo também não anda muito interessado em descobrir os segredos do universo. Está mais interessado nos problemas da seleção na última Copa do Mundo...

Certo, to perdendo o foco. Minha mãe sempre diz que tenho problemas de concentração. O caso é que não tinha nada suspeito naquela sala além de como eu tinha ido parar ali, então esfreguei as mãos e me dirigi às grandes portas de correr atrás da mesa, certo de que, quando as abrisse, eu acordaria, ou daria de cara com um monstro enorme e baboso que eu teria que matar. Acho que eu tava jogando Doom demais.

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⏰ Última atualização: Nov 04, 2020 ⏰

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